
Hoje em dia para ser e existir, à maneira cartesiana, não é suficiente pensar. Para demonstrar que somos humanos, sem deixar dúvidas, é necessário confirmar primeiro que não somos um robô e, depois, para poder navegar na vida (vingar, na antiga linguagem analógica), é preciso aceitar os cookies, uma coisa que todos fazem e só poucos sabem o que é.
Com o advento da internet, as elites perderam o exclusivo da visibilidade e do saber. A pesquisa na net faz-se sem intermediários. Partilha-se uma quantidade incomensurável de informações. Conhece-se, em tempo real, o que vai pelo mundo fora. Tem-se a sensação inebriante de ter o universo nas mãos. Nos bastidores, novas concentrações de poder criam modelos de comportamento e influenciam decisões a nível global.
«Pode tentar-se mudar a cabeça das pessoas, mas é só uma perda de tempo.
Muda as ferramentas (tools) à disposição e mudarás o mundo.»Steward Brand
Na Era Digital, quem não é visível, quem não se mostra, não existe. O visível confunde-se com o essencial, a tal ponto que a frase do Principezinho “o essencial é invisível aos olhos“ se tornou quase obsoleta. A visibilidade é um must. Parece que se tornou tão vital como o ar que se respira.
Acedendo à net através de vários dispositivos, qualquer pessoa pode mostrar-se e construir a própria imagem, verdadeira ou falsa, publicar informações e conteúdos pessoais ou esmiuçar a vida de terceiros com um simples clique. Obviamente, o furor da visibilidade desvaira e produz efeitos colaterais: qualquer um pode insultar o próximo comodamente com um post nas redes sociais e, nos casos extremos, destruir-lhe a reputação ou a vida; E os medíocres podem ser tão geniais na gestão da sua personagem, que se torna difícil constatar os defeitos de fabrico.
“Vêem-me, logo compram-me!”: é a convicção de quem aposta na visibilidade para vender bens, serviços, ideias ou ideologias. Cabe aos destinatários vigiar, com uma atenção lenta e reflexiva, a existência de virtudes e vantagens do que lhes é proposto, bem como verificar que a entrega das promessas ao domicílio seja pontual. Caso contrário, pode abandonar a fidelização ao produto.
Contudo, é preciso reconhecer que a visibilidade, seja em que meio for, funciona. É eficaz na promoção pessoal, permite dar a conhecer o que se pensa ou se ignora, o que se faz ou se omite. Está recheada de excessos e tem contra-indicações, mas é uma oportunidade, incontestável para um gato vaidoso se ver leão.
Vivemos uma situação paradoxal: uma massa individualista e narcisista, hiper-conectada, muitas vezes sem identidade, é hábil a usar a técnica mas carece de substância. Navega à tona d’água do conhecimento, sem aprofundar. Ignora que ligar o computador não é mais rápido do que abrir um livro.
Desde tempos remotos que lendas e equívocos geram narrativas e também fazem a história. Só que os meios hoje são mais potentes e a velocidade de divulgação excepcional, incomparável.
Assiste-se à expansão ilimitada de uma espécie de esquizofrenia colectiva na confusão do virtual com o real. Constrói-se “realidade” a partir de verdades vagas e imprecisas que se tornaram virais. Supostas verdades excitam a mente e exaltam os ânimos mais do que as verdades comprovadas. São dinâmicas e correm velozes, impelidas por forças difíceis de identificar e controlar.
Pelo contrário, a retratação é estática, lenta, não emociona, não vibra, convida ao bocejo, e acaba até por se perder no silêncio da indiferença.
Neste contexto, a categoria pensante dos tímidos e introvertidos, que tem deixado marcos importantes no mundo, inventando e criando, sem estrondo nem publicidade, também se converteu à visibilidade, porque a isso é forçada ou por deliberada vontade. Recusa, contra a sua natureza, ser o germe e quer ser o fruto.
No grande teatrinho da visibilidade, o lobo com falinhas mansas pede amizade ao cordeiro ingénuo e a raposa elogia a voz do corvo com os olhos cravados no queijo que ele tem no bico. Os poetas e os distraídos que tropeçam nas nuvens já não preocupam ninguém. Porque agora quem anda nelas são os nossos dados.
Maria J. Mendes
* A autora usa a norma ortográfica anterior.
Isabel Pecegueiro / Maio 28, 2021
Parabéns! Texto particularmente inspirado, sobre um assunto que deveria fazer reflectir.
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Maria J. / Maio 30, 2021
Muito obrigada pela leitura e comentário.
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Maria Josete Berrones / Maio 31, 2021
Belíssimo texto, que nos obriga a pensar.
Pois é! os novos tempos colocam-nos desafios difíceis de ultrapassar… Mas ainda é possível viver fora das nuvens, permanecer (quase) invisível, ler livros e optar pela informação mediada por jornalistas..
Nas gerações que sucedem à nossa o desafio é muito maior, reconheço. Mas é nossa obrigação mostrar que há outros caminhos, para evitar que façam parte da massa de irrelevantes, ignorantes, desinformados, manipulados …
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Maria J. / Junho 1, 2021
Absolutamente de acordo . Muito obrigada.
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