Uma língua com eco

A língua é o coração e um dos fundamentos da identidade duma nação e deveria ser considerada por todos um bem comum, a ser preservado e defendido. Ela encerra o currículo histórico dum país e constitui um gigantesco património de storytelling da sua cultura.

Pensar não é um simples resultado mecânico da actividade cerebral; o pensamento está ligado, intimamente, à estrutura da língua em que nasce e se forma. Com a sua especificidade, ela dá-lhe cor e significado.

Há uma peculiaridade na língua portuguesa, tão rica de vocábulos, provérbios, expressões idiomáticas, que merece uma pausa de reflexão. Refiro-me à curiosa repetição de certas palavras no diálogo entre as pessoas. Exemplificando:

– Aquele fulano é tão maçador, não é? É, é.

– Desculpe, está na bicha? Estou, estou.

A estas respostas “É, é…. Estou, estou…” poderíamos acrescentar outras tantas do tipo “Sim, sim… Não, não…”, “Vou, vou…” de uso comum, que pululam diariamente nas nossas conversas.

A priori, é de excluir a hipótese, surreal e extravagante, de que a reiteração das palavras se verifique porque quem responde é gago e quem pergunta é surdo.

E então do que se trata? É, por acaso, uma forma de ganhar tempo para reflectir no que se vai dizer a seguir? Ou é uma espécie de eco intrínseco da língua portuguesa que nos faz sentir mais seguros e mais ouvidos? Provavelmente, é apenas um modo simpático e sui generis, de reforçar a ideia, que ganha expressividade graças à repetição.

A explicação, se é que existe, permanece um mistério insondável e é, no fundo, irrelevante.

É também facto conhecido que Portugal é o país dos “ais”; proliferam os Ai Jesus!, Ai meu Deus! Ai credo!…, só para citar alguns modos de dizer muito antigos. Por si só, este facto não é bom nem mau, porém, se mudarmos de perspectiva, pode assumir um significado muito diferente.

Pena foi que estas características da língua nunca tenham sido aproveitadas comercialmente, na óptica de que é preciso utilizar e optimizar os recursos disponíveis, muito do agrado dos especialistas. Entrando na esfera da imaginação, pé ante pé, para não despertar preconceitos ou chocar sensibilidades, e usando irónica e livremente a licença fantástica, seria possível hipotizar que os portugueses saíssem da confort zone vitimista e fatalista, para desfrutar da sinergia do binómio – repetição e recurso sonoro “Ai isto, Ai aquilo…”, com qualquer ideia inovadora.

Por exemplo, contactar uma conhecida multinacional americana com o fim de obter royalties pelo uso, no território nacional, de duas famosas marcas com manifesta assonância com as expressões lusitanas pré-existentes, Ai pede, pede e Ai pode, pode!

É óbvio que as negociações deveriam ser feitas, em nome de todos, por alguém encarregado de representar oficialmente a nação, pessoa competente na matéria e conhecedora do marketing criativo e agressivo. Sendo a questão delicada, a atitude prevalente deveria ser a discrição e uma indiscutível habilidade de negociação; tratar-se-ia de reivindicar algo relativo a uma situação de mercado já consolidada, recuperando o tempo perdido. Indispensável ter em conta também os conselhos de um bom advogado, com comprovada experiência em marcas e patentes. Last but not least, tudo a ser feito, absolutamente, sem qualquer interesse pessoal além do proveito da comunidade. Este último aspecto, desmistificador dum paradoxo, seria a confirmação de que (cito de cor) podem perfeitamente existir políticos honestos, assim como existem oradores gagos e cabeleireiros calvos.

Melhor, se fora do acordo ficassem os países lusófonos. Se desejassem reclamar direitos, deveriam fazê-lo em autonomia. Evitar-se-ia, assim, que alguém nos acusasse de neo-imperialismo ou avidez e de querer ficar com “o quinto”. Isto também por uma questão de princípio: que seja cada um a governar-se a si mesmo, assumindo as consequências das suas acções. Porque é fácil cair na tentação de justificar todas as carências de hoje, com factos e razões de ontem. Como se, no intervalo entre passado e presente, os países tivessem ficado despovoados e o barco sem leme.

A concretização do negócio traria com certeza benefício para o erário público, sempre tão aflito com o débito. O sucesso conquistaria o coração dos cépticos, que vivem embrulhados em véus de dúvidas e melancolia, além de aumentar a fraca auto-estima da categoria dos inveterados “Oxalás”, acostumados a entregar a sua sorte nas mãos da divina providência. Questionaria, igualmente, um mito ancestral: «A Península Ibérica é como uma costoleta e Portugal ficou com o osso.»


Maria J. Mendes

* A autora usa a norma ortográfica anterior.

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Latest comments

  • Muito original e imaginativo. E sim, somos a parte mais dura de roer☺️

    • Muito obrigada pela leitura e comentario.

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