Reflectindo sobre as famílias fracturadas

Na genial formulação com que Tolstoi inicia a sua “Anna Karenina”, podemos ler que “As famílias felizes são todas semelhantes; cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

Nada mais verdadeiro. Nesta época, em que se digladiam os que pretendem destruir a família tradicional e os que dela apresentam uma visão idílica e idealizada, encontramos neste aforismo um pouco do necessário bom senso. Na verdade, se cada indivíduo é um ser complexo em si mesmo, como esperar que o casal, a família, ou qualquer agrupamento humano seja simples?

O sociólogo e gerontólogo Karl Pillemer, no seu recente livro “Fault Lines: fractured families and how to mend them” (Falhas sísmicas: famílias fracturadas e como as remediar, nossa tradução), de 2020, oferece um precioso contributo para a compreensão deste agrupamento social. Nele trabalha dois conceitos essenciais: ‘rift”, ou seja, ruptura, brecha, fenda aberta no todo familiar; e “estrangement”, significando separação, alienação. O rift, que em Geologia refere a abertura causada por movimentos tectónicos, transpõe-se, nas ciências humanas, para a ferida aparentemente irreparável, aberta no relacionamento humano e, no caso em apreço, concretamente na família. Já para o “estrangement” são apontados seis caminhos essenciais :

– o longo braço do passado;

– o legado do divórcio; 

– os parentes por afinidade, quando problemáticos; 

– o dinheiro e as heranças; 

– as expectativas frustradas; 

– valores e estilo de vida diferentes.

Numa perspectiva pessimista, diria que todos estes caminhos se podem reunir, causando separações sem retorno.

Talvez o tema com maior saliência neste assunto seja o da alienação parental, quando ofensas, crueldade ou inconsciência, levam um progenitor magoado a tudo fazer para que, após a separação do casal, os filhos sejam totalmente afastados do outro. Os filhos passam a viver em involuntária semi-orfandade e o ex-parceiro geralmente mergulhado/a na mais absoluta infelicidade.

Contudo, há um circunstância frequentemente ignorada e com idêntico potencial de mágoa, após o casamento. Refiro-me ao facto de, nessas situações, cada cônjuge trazer consigo, invisível, a sua família de origem. E de, consciente ou inconscientemente, nos primeiros meses, ou anos, de matrimónio, existir um combate surdo pela predominância no novo casal no que se refere a valores, estilo de vida e comportamentos. Se essas famílias forem antagónicas, cedo se instala o rift. Não subestimando a genética, é comum que filhos “saiam” a uma ou a outra dessas famílias hostis, tal como é comum que essa hostilidade gere o afastamento, por vezes total, de um ou de ambos esses ramos da árvore genealógica. Assim, frequentemente, crianças que se sentem apreciadas e acarinhadas pelos familiares com que mais se identificam, vêem-se privadas, por vezes para toda a vida, do seu convívio. Essas crianças ficarão fatalmente, a ser o patinho feio da família  “vencedora” e o estrangement fará o seu caminho até que, adultas e incompreendidas, cortem relações com familiares, eventualmente com os próprios pais. Estou a exagerar? Antes o estivesse. Não foram poucos os exemplos dessa trágica situação, encontrados na minha vida profissional e pessoal.

O dinheiro e as heranças são talvez a mais comum causa de estrangement entre irmãos. O potencial sofrimento causado por esses acontecimentos é, no entanto, menor do que o referido no ponto anterior, já que envolve adultos, não crianças, embora estas também não deixem de sentir a hostilidade inevitável.

Já no que se refere ao casal, dir-se-ia que o período de namoro teria preparado o terreno para que se ultrapassasse com sucesso as ameaças elencadas – e assim acontece, felizmente, muitas vezes. Não obstante, todas configuram perigo, e muitas são apenas sentidas, sem que cheguem à esfera cognitiva.

Nas segundas núpcias, até o legado do divórcio afecta seriamente o equilíbrio conjugal, e nestes casos as dificuldades podem ser bem mais numerosas e desgastantes.

Não é fácil responder à questão de como remediar as falhas nas famílias fracturadas, mas Pillemer considera que várias causas poderão encontrar solução num tratamento psicoterapêutico.

A frustração de expectativas, em qualquer caso, poderá ser, talvez, a principal causa deste tipo de estrangement. E a adaptação das expectativas de cada um face à nova realidade familiar o desafio a vencer.


Isabel Pecegueiro

* A autora usa a norma ortográfica anterior.

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Latest comments

  • Análise muito interessante, sobre um assunto que toca toda a gente, directa ou indirectamente.
    A ideia de fractura pode ser aplicada a um coração ferido, pela morte dum sentimento, duma pessoa ou dum sonho.
    Infelizmente, um coração fracturado não se pode engessar, como uma perna ou um braço, para sarar as feridas.

    • Não, não pode, infelizmente. Obrigada pelo comentário 🙂

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