
O livro “O Complexo de Culpa do Ocidente” (no título original, a La Tyrannie de la pénitence : Essai sur le masochisme Occidental, de 2006), de Pascal Bruckner, tem uma tese simples: nós, ocidentais, achamos que o resto do mundo tem de nos odiar, em função das alegadas malfeitorias que os nossos ancestrais terão andado a fazer pelo mundo fora nos últimos séculos, desde o colonialismo à escravatura, passando pela exploração, o capitalismo, o racismo, etc. Sentimo-nos maus, culpados e arrependidos, e expiamos a culpa execrando a civilização a que pertencemos, reféns morais dos alegados pecados que os nossos avoengos terão cometido, eternamente em dívida para com os bons selvagens a quem roubámos o Paraíso.
A moda agora é pedir desculpa, pagar reparações, declarar a nossa irrevogável maldade e entranhado racismo, e até o Papa já andou por aí a rojar-se pelo chão e a pedir desculpas pelo passado. Em nenhum momento nos passa pela cabeça, ou se passa não interessa, que os nossos ancestrais fizeram o melhor que sabiam e podiam, lutaram, mataram e morreram, no contexto do seu tempo, para nos legar o melhor futuro possível.
No Ocidente, a “questão racial” parece crescer de urgência quanto mais é reparada e resolvida. Inverteu até os seus termos. Do lado negro, a preferência racial é assumida agressiva e abertamente, sem complexos de culpa e até com orgulho. A inteligentsia woke acha isto “normal”. Palavras e atitudes infinitamente menos explícitas, verbalizadas ou esboçadas por ocidentais, são imediatamente assinaladas, vituperadas, e os seus autores perseguidos, insultados, criminalizados até, em alguns casos já vindos a público.
É por isso que um senegalês acolhido em Portugal pode tranquilamente apoderar-se de Fanon e apelar à morte do “homem branco” (Mamadou Ba, 22-11-2020), tendo como recompensa a promoção, via decisão governamental, para um comité de luta contra o racismo. Por detrás deste espantoso relativismo, está o tal complexo de culpa do homem branco, pecado original colectivo que nos torna culpados à nascença.
O complexo de culpa busca raízes no marxismo, segundo o qual a história se faz e se explica numa luta cósmica entre opressores e oprimidos, explorados e exploradores, ricos e pobres, burgueses e operários, nós e eles.
Nós, os filhos dos opressores, trazemos connosco ao nascer, marcada a ferro na alma, a culpa dos nossos pais, cujas acções devemos condenar e das quais nos devemos distanciar. A culpa é um mecanismo poderoso que se apodera da consciência, a atormenta, e a leva a procurar alívio. As religiões, sagradas e profanas, compreenderam isso desde cedo, e todas elas são sábias na criação da culpa (a noção de pecado) e monopolistas dos instrumentos para a aliviar. No catolicismo temos a confissão, o pecado original, o acto de contrição, o pecador, a perseguição religiosa etc. Os seus equivalentes no socialismo real são a consciência de classe, a purga, a auto-crítica, o reaccionário, etc.
A culpa do Ocidente, ou do homem branco, é um desses mecanismos. A culpa da escravatura e do “mal que fizemos aos negros”, ou aos índios, foi sendo instilada na cabeça das pessoas ao longo das últimas dezenas de anos, por um sistema educativo dominado por intelectuais orgânicos em missão, e há milhões delas que querem desesperadamente expiá-la.
Na América o mecanismo está em ponto de rebuçado. “A “Fogueira das Vaidades” (1987), de Tom Wolfe, já tinha dado o sinal do que aí vinha. Hoje, na América real, miríades de personalidades negras não hesitam em fazer declarações do mais puro racismo, que são candidamente treslidas, contextualizadas, branqueadas e justificadas como natural reacção às maldades que os nossos tetravôs terão feito aos tetravôs dos negros.
Todavia nenhuma pessoa mentalmente equilibrada sente culpa pessoal pelas alegadas malfeitorias dos nossos ancestrais, pelo que a culpa é então transferida para o colectivo, odiamos a “nossa” civilização, os nossos antepassados, a nossa pertença, a nossa identidade, mas não nos odiamos a nós. Nós somos melhores que ela, e vamos expiar a sua culpa, condená-la, atacá-la, amar as suas alegadas vítimas.
O mecanismo da culpa não é exclusivo da raça, mas é ele que leva grandes faixas da população branca a saltitarem em torno de Barack Obama ou Kamala Harris, os “negrinhos”, “coitadinhos”, que vão absolver-nos dos pecados dos nossos pais e livrar-nos da culpa. O facto de nenhum destes personagens ser negro ou filho de escravos, interessa pouco. Eles já não são apenas eles, mas os símbolos da nossa expiação.
Infelizmente, os resultados das interacções baseadas na culpa conduzem normalmente a destrutivas relações de amor-ódio que, longe de apaziguarem as relações entre indivíduos de diferentes origens numa mesma comunidade, tenderão a inflamar e a infectar o resto do organismo social. Como, de resto, está já a verificar-se.
José do Carmo
* O autor escreve segundo a norma ortográfica anterior.