Quem leva a sério as contas públicas?

Mário Centeno “é um génio político” – assim lhe chamava João Miguel Tavares (JMT) num artigo que escreveu na edição do Público de 11-2-2021 (acesso pago). E não se fica por aí: “Convém assumi-lo com clareza, que as grandes verdades são para serem ditas”. Segundo o autor, na execução do Orçamento do Estado para 2016, “Centeno descobriu a fórmula mágica que tem permitido ao PS governar nos últimos seis anos sem maioria absoluta”. Que fórmula é essa? “Cativações”! Diz JMT que não só “cativou a esquerda com promessas de dinheiro”, como “cativou o dinheiro e deixou a esquerda entretida com promessas”. 

O que se escreve hoje para iludir as pessoas!… O nosso jornalismo está transformado em exercícios de bajulação conveniente, contribuindo desse modo para o autismo de um poder cada vez mais arrogante e insolente. Enquanto ministro das Finanças, as passagens de Centeno pelo Parlamento foram exibições reles de petulância e indelicadeza para com os deputados que recusavam aceitar a sua conversa mistificadora. Por vezes, Centeno não se importava de recorrer ao achincalhamento.

Ao alertar novamente para a crescente opacidade das contas públicas, Helena Garrido, em artigo publicado no Observador, em 15-2-2021, intitulado “As máscaras orçamentais” (leitura paga), assinalava:

“O Parlamento tem-se revelado incapaz de fazer o devido escrutínio e nem o Conselho de Finanças Públicas o Governo respeita. A atitude é de “quero, posso e mando” e o discurso das Finanças, desde Mário Centeno, é de uma agressividade que raia por vezes uma atitude rufia”.

Rezam as crónicas que o seu sucessor adoptou o mesmo estilo trauliteiro.


Falta verdade orçamental


Nazaré da Costa, presidente do Conselho de Finanças Públicas, queixou-se em entrevista ao Jornal Económico, publicada em 19-2-2021, que “o princípio da verdade orçamental está posto em xeque”. Criticou a falta de informação do Ministério das Finanças para calcular o défice, assim como a falta de transparência no que respeita à quantificação de novas medidas anunciadas pelo Governo. Conclusão: o Governo faz com enorme soberba o que entende, próprio de regimes autoritários, onde, como é sabido, normalmente não se prestam contas.

Falando de escrutínio às contas públicas, Helena Garrido sublinhava no referido artigo no Observador, de 15 de fevereiro, que “valia a pena não suspender a democracia”, observando de seguida:

“Especialmente, é preciso que os partidos que apoiam o Governo exerçam as suas funções. Durante os últimos cinco anos, vimos o Governo fazer o que bem lhe apetecia com o Orçamento, assistimos mesmo a uma disciplina orçamental que nem se conseguiu no tempo da Troika. Mas sempre com o Governo a prometer mundo e fundos e os partidos que o apoiam a acreditar ou a fingir que acreditavam.”

A questão é essa. Quando JMT afirma que Centeno “cativou a esquerda com promessas de dinheiro”, tal só aconteceu porque a esquerda aceitou ser cativada nesses termos. Por isso, sabendo conscientemente o que se passava com a execução orçamental em cada ano, essa esquerda foi sendo conivente com Centeno e com a mentira que constituía a elaboração de cada orçamento. Chamar genialidade política a truques e artifícios para enganar os cidadãos, apenas com o intuito de lhes transmitir a ideia que a austeridade acabou, não é uma atitude séria. Como acreditar em quem nos vende gato por lebre?

O resultado das cativações está aí à vista e cada qual, no seu sector, sabe muito bem o que têm significado e o que afecta o funcionamento da vida do país. Por exemplo, o sector da Saúde, agora em foco por causa do efeito devastador da pandemia. Quando se analisam os dados com atenção, constata-se que o discurso do Governo socialista é enganador, pois assenta num processo engenhoso para escapar ao escrutínio dos partidos e das entidades fiscalizadoras. É o recurso a uma contabilidade criativa para que ninguém perceba a manobra do que é preciso disfarçar.


O engodo das promessas governamentais


Filipe Charters de Azevedo escrevia em 9-12-2019, no Dinheiro Vivo:

“Ao contrário do que o Governo indica, existem de facto cativações na Saúde no valor de 500 milhões de euros. Desde 2017, pelo menos, que o Governo retém este valor de forma a reprimir a despesa de saúde e, supostamente, forçar os Hospitais EPE a gerir melhor o dinheiro. Note-se que o orçamento total do SNS indicado no Orçamento de Estado é de cerca de 9 mil milhões de euros, pelo que o governo cativa assim cerca de 6% da despesa orçamentada.”

Por sua vez, Joaquim Miranda Sarmento, em texto de 15-2-2021, no Eco, acrescentava, a propósito do que designa de “farsa do reforço do SNS” desde 2016, que a despesa pública do SNS, em percentagem do PIB, “esteve todos os anos abaixo do valor de 2015”.

Quando o BE se “descativou” recentemente, votando contra o Orçamento de 2021, notou-se a diferença. A deputada Mariana Mortágua não tem poupado o ministro das Finanças, João Leão, a críticas, ao considerar inaceitável que tenha ficado por executar sete mil milhões de euros em 2020. Depois de lamentar, como exemplo, que o subsídio de risco para os profissionais da saúde tenha sido “regateado” pelo ministro, atirou-lhe, numa audição parlamentar, que “a discussão orçamental não é uma brincadeira”. Disse-lhe ainda que “não pode afirmar que não executa e faz bem em não executar” e acusou-o de fazer de todos “fantoches num debate orçamental”.

Como se vê pelas críticas dos nomes aqui citados, as contas públicas estão transformadas numa charada que o Governo procura dissimular, atirando poeira para os olhos dos portugueses. Desde que tomou posse, o Governo socialista está obrigado a seguir o rigor orçamental exigido por Bruxelas, mas faz sempre crer que a austeridade da Troika acabou com o actual ciclo político. Não é verdade. Estamos perante uma trapaça, urdida sem escrúpulos, que a comunicação social alinhada com os socialistas alimenta.

Hoje, é cada vez mais notório que o País está sem dinheiro, pois foi gasto pelos socialistas quando nestes cinco anos deram prioridade à satisfação de clientelas que lhes são eleitoralmente úteis. Não há assim dinheiro para pagar as pesadas dívidas do Estado aos privados e as constantes promessas governamentais sobre isto e aquilo são apenas mais outro engodo com que se engana os portugueses. Só desta forma se explica que Portugal seja o país que menos gastou com a resposta à pandemia na zona Euro.


Francisco Menezes

* O autor usa a norma ortográfica anterior.
** A imagem do artigo foi editada.

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