Que fazer depois de Kherson?

As forças ucranianas chegaram ao centro de Kherson no fim da passada semana, depois de terem obrigado as melhores unidades russas a retirarem-se da única capital regional que haviam capturado à má-fé.

Uma cidade que, sublinhe-se, “é território russo”, como reivindica o Kremlin.

Não retiraram porque quiseram, mas porque a isso foram obrigadas pela realidade no terreno.

Ali estavam reunidas unidades como a 7ª, 76ª e 98ª divisões aerotransportadas e a 11ª brigada aerotransportada independente. Eram 24 batalhões de infantaria, 7 divisões de artilharia e 8 batalhões da “Rosgvardiya”.

Todo este potencial não estava ali por acaso e não saiu dali por acaso.

A ideia seria atrair o ataque ucraniano para posições bem defendidas e exaurir o seu ímpeto, uma espécie de armadilha de atricção.

Os ucranianos não morderam o isco e em vez disso chegaram os HIMARS à frente para atacar com extrema precisão alvos remuneradores, como vias de comunicação, centros de comando, hubs logísticos, concentrações de tropas, etc.

Incapazes de reabastecer as tropas nas trincheiras, incapazes de atrair o ataque frontal ucraniano, e sujeitos ao fogo inclemente da artilharia, o plano saiu pela culatra aos russos e foram eles que caíram na armadilha da atricção.

A retirada foi o plano de recurso, para evitar o desastre total, e isto tem de ser dito porque andam por aí corifeus do Kremlin, incluindo certos generais “da paz”, a declamar, perfeitamente conscientes da mentira que tentam propagar, que os russos saíram de Kherson como um “gesto de boa vontade”.

Que fazer após a reconquista de Kherson?

Em termos puramente militares e pressupondo que as forças ucranianas estão em condições materiais e psicológicas de prosseguir, o que devem fazer é de meridiana clareza: manter o ímpeto e a iniciativa e atacar as posições russas, para destruir as forças russas e reconquistar território. A ofensiva, como operação militar, tem como um dos princípios fundamentais a conservação da iniciativa que é, na realidade, a única grande vantagem de quem ataca. Perder a iniciativa é perigoso. E para manter a iniciativa, os ucranianos não podem descansar à sombra da bananeira. Têm de reconhecer as oportunidades, analisar modalidades de acção e actuar rapidamente e com ímpeto.

Sem ímpeto, o defensor pode recuperar, e agir para deter a ofensiva, retirando a iniciativa ao atacante.

A racionalidade destes conceitos pode entender-se facilmente na metáfora de uma luta de rua.

Se acabo de vibrar um golpe no meu adversário, que o fez cambalear, o que tenho de fazer é aproveitar para lhe dar mais e tentar acabar com ele. O que não devo fazer, em nenhuma circunstância, é dar-lhe tempo e espaço para recuperar do golpe e reaver as condições para me golpear a mim, sobretudo se for maior que eu.

Ora, uma vez que parece ter a garantia inabalável do apoio americano, a Ucrânia está em condições de explorar o sucesso em vez de fazer aquilo que neste momento convém aos russos: consolidar posições e congelar-se numa linha da frente que permita ganhar tempo para lamber as feridas e preparar-se para voltar ao combate.

Se a Ucrânia mantiver a iniciativa e o ímpeto, pode impor aos russos onde e quando acontecerá o próximo golpe, porque no momento em que os ucranianos logram esta vitória estratégica e simbólica, há combates ferozes a ocorrer mais a norte, ao longo dos mais de 1.000 km de frente.  

O Inverno não vai parar a guerra. Talvez a limite de alguma maneira, aqui e ali, mas tal como vejo as coisas, os ucranianos parecem estar mais bem preparados para as condições meteorológicas do que os russos.

As trincheiras abandonadas pelos russos, em Kherson, deixam a nu as condições deploráveis que as melhores forças russas tiveram de enfrentar antes da retirada. Trincheiras estreitas, lamacentas, expostas à chuva, ao frio, ao vento e aos fogos precisos da artilharia ucraniana.

A iniciativa ucraniana pode ser, por exemplo, na região de Bakhmut onde a Rússia, apoiando-se nas formações do Grupo Wagner, vem tentando romper há meses, usando sempre as mesmas tácticas estafadas de barragens massivas de artilharia e posteriores tentativas, limitadas e custosas de infantaria.

Pode ser na zona de Zaporigia, num avanço para sul em direcção ao Mar de Azov, movimento que, se bem-sucedido, quebraria a continuidade territorial do território ocupado pela Rússia e, se conjugado com a destruição efectiva da Ponte de Kersh, isolaria totalmente a Crimeia. Os russos estarão entrincheirados e a reforçar as defesas, mas o terreno é aberto e chegar a Mariopol, Melitopol e Berdiansk, seria uma esmagadora vitória que provavelmente vergaria a Rússia às realidades do terreno e a confrontaria com as limitações do que pensava ser o seu poder.

Pode ser em mais sítios, mas, a avaliar pelo histórico de competência da liderança militar ucraniana, o que quer que venha a acontecer será cuidadosa e discretamente planeado, e bem executado.

Neste momento não faz sentido para a Ucrânia tentar a difícil travessia do Dniepre para perseguir as forças russas a sul de Kherson. Apenas chegar à frente a artilharia de longo alcance para atacar as forças que defendem os eixos de aproximação à Crimeia e apoiar a eventual ofensiva sobre o Mar de Azov.

Será a hora de negociar, como “exigem” sempre os apoiantes da Rússia quando as coisas não estão a correr bem?

De notar que as “negociações” que esta gente sugere passam sempre pela aceitação da derrota da Ucrânia e a cedência às aspirações do invasor, ou seja, a Ucrânia cederia o seu território e parte da sua soberania.

Como é evidente, nada disto interessa à Ucrânia.

Nem ao Ocidente, de que fazemos parte e de que também fazem parte os corifeus do Sr Putin.

Um cessar-fogo temporário?

Bem, a “palavra de honra” da Rússia não tem hoje qualquer credibilidade, e um acordo desse tipo seria apenas tinta no papel. O que provavelmente aconteceria é que a Rússia iria aproveitar para ganhar tempo, recuperar o equilíbrio, lamber as feridas e preparar o golpe seguinte.

Nas presentes condições, nenhuma negociação fará a Rússia abdicar dos seus objetivos nesta guerra que desencadeou. Apenas a força do inimigo e o choque com más realidades no terreno, poderão obrigar a Rússia a recuar. É o clássico caso em que, se queres a paz, tens de fazer a guerra.

Se a Ucrânia estivesse na situação de derrota iminente, negociar podia ser o menor dos males, mas não é claramente o caso, pelo que, tendo garantido o apoio ocidental, faz todo o sentido que use a sua iniciativa e o seu poder militar para obrigar a Rússia a fazer no resto do território aquilo que foi obrigada a fazer em Kherson e já tinha feito em Kiev e Kharkhiv: retirar ou fugir!

Zelensky foi claro quando ontem, em Kherson, disse que a Ucrânia estava preparada para fazer a paz, mas apenas quando tivesse recuperado todo o território invadido e ocupado. Neste momento está em condições de dizer isso, porque tem um Exército incomparavelmente melhor do que aquele que tinha em 24 e Fevereiro de 2022.

Compete pois à Ucrânia, e não ao PCP ou aos “especialistas” putinófilos, decidir os termos que são aceitáveis, e convém ao Ocidente apoiar essa decisão, na certeza de que não se pode subestimar a Rússia, mas também não se deve sobrestimar. E sabendo que uma Rússia que consiga ganhos territoriais como resultado de uma clássica invasão imperialista, não irá parar até sofrer uma derrota inapelável no campo de batalha.

É do nosso interesse que não venhamos nós a ser obrigados a travar esse combate e isso passa por, no presente, apoiar a Ucrânia com tudo e mais um par de botas.


José do Carmo

*O autor escreve segundo a anterior norma ortográfica.

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