Protocolos no meio da pandemia

Devo esclarecer que este não é um artigo científico mas sim um ensaio jornalístico simplificado, que envolveu alguma pesquisa e pode, obviamente e para quem não é cientista, conter alguma incorrecção ou omissão. Espero que, se assim for, não retire nada ao propósito essencial do artigo, uma simples opinião sobre o caminho da ciência no meio da pandemia, desta pandemia ou de outra que venha a seguir.

Uma grande parte das doenças provocadas por micro-organismos tem, hoje em dia, tratamento farmacológico. Porém, o tratamento farmacológico de uma doença pode levar anos até ser aprovado pelas autoridades certificadoras de medicamentos de cada um dos países afectados pela doença.

Até um medicamento estar disponível para o tratamento de uma doença, tem que passar por vários crivos, podendo esse processo arrastar-se tanto que não chega a tempo para combater uma doença pandémica que entretanto ceifa milhões de vidas no espaço de meses ou de poucos anos, sem que algum medicamento tenha sido aprovado para a combater. E é esta a situação em que estamos agora.

A aprovação de um medicamento para uma determinada doença, começa com um trabalho de laboratório em que os cientistas expõem células infectadas a um potencial candidato a medicamento (ensaio “in vitro”) e analisam se houve redução ou eliminação do agente causador da infecção. Se o resultado for encorajador e o candidato a medicamento provar ser um dos melhores e mais seguros entre outros que possam ter sido testados, o passo seguinte é o dos ensaios em cobaias como ratos ou macacos que são animais de anatomia semelhante aos humanos. Nesta fase, estuda-se a eficácia e segurança sem colocar em risco a vida de seres humanos. Só quando houver elevado grau de certeza que o medicamento pode ser usado em humanos é que se passa aos ensaios chamados clínicos, que têm 3 fases em que se vai aumentando o número de pessoas envolvidas em cada fase. Se numa destas fases houver ocorrências indesejáveis, interrompe-se os ensaios e investiga-se a razão da ocorrência. Se se chegar à conclusão que não se deveu ao medicamento, os ensaios são retomados.

Tanto os ensaios com animais como os ensaios em humanos, realizam-se dividindo a população envolvida no teste em pelo menos dois grupos, um que recebe o medicamento e outro, designado por grupo de controlo, que recebe um placebo. Depois de algum tempo, compara-se o que se passou com os dois grupos e tira-se conclusões acerca da segurança e eficácia do medicamento. Os melhores ensaios clínicos são aqueles em que nem os cientistas nem os envolvidos sabem quem tomou o medicamento e quem tomou o placebo. Isto garante que não haja enviesamento dos resultados nem por parte dos cientistas que podem querer forçar os resultados a favor da sua descoberta nem dos pacientes pelo chamado efeito placebo.

Findos os ensaios clínicos, os resultados da investigação são publicados em revistas científicas, resultados que devem ser revistos por pares (“peer-review”), contestados ou comprovados por serem reproduzíveis em qualquer parte.

Só após todo este processo e, no caso de resultados comprovadamente positivos, o medicamento é sujeito a aprovação das autoridades que regulam a utilização de medicamentos nos vários países. Estas analisam o processo e poderão autorizar ou não.

Podem, por isso, decorrer vários anos até que um medicamento para uma certa doença seja aprovado e chegue às prateleiras das farmácias, tendo custado investimentos elevados que podem atingir alguns milhares de milhões de dólares ou euros. E é por esta razão que só grandes investidores como os laboratórios farmacêuticos ou entidades que as apoiam seguem por esta via estabelecida pela ciência médica e farmacológica no avanço lento da descoberta de medicamentos.

Talvez tenha sido esta a razão que levou à escolha da vacina como a forma mais rápida de enfrentar o desafio colocado pela pandemia. O desenvolvimento de uma vacina passa pelas mesmas fases que o desenvolvimento de um tratamento preventivo ou curativo. Mas a experiência com o desenvolvimento de vacinas da gripe, que todos os anos são adaptadas para novos vírus, permitiu avançar mais depressa e, em menos de um ano, apareceram várias vacinas cujos ensaios clínicos revelaram ser seguras e eficazes. A única incerteza que ainda existe é a duração da imunidade que elas conferem, a ser avaliada daqui em diante.

A vacinação requer porém tempo e a disponibilidade de doses de vacinas, não havendo até agora previsões fiáveis sobre quando ela trará a almejada imunidade de grupo a todos os países. A complicar as coisas começam a surgir novas estirpes do vírus para as quais a eficácia das vacinas não foi comprovada, esperando-se contudo que elas funcionem também.

Entretanto, nem a OMS nem as autoridades sanitárias da grande maioria dos países, aprovou oficialmente medicamentos para profilaxia ou tratamento da COVID-19, dando ênfase às medidas não-farmacológicas como higiene, afastamento social, uso de máscaras. Estas medidas pressupõem que o contágio se dá quase exclusivamente de pessoa para pessoa, o que não é uma certeza mas uma suposição, apoiada apenas por rastreios ou testemunhos de pessoas infectadas.

Outra via sugerida por alguns poucos países foi conseguir a imunidade de grupo não adoptando medidas muito rigorosas de afastamento social. A desvantagem desta solução é a ocorrência de muitos casos graves em simultâneo que podem levar os serviços de saúde à ruptura. De facto, as medidas de confinamento já provaram que só contribuem para o abrandamento do contágio mas sem o eliminar. No médio prazo toda a população terá sido exposta ao vírus, podendo ou não ficar doente. As taxas de mortalidade estimadas indicam que, se todos forem expostos ao vírus, cerca de até 2% da população poderia morrer. Para se ter uma ideia, só em Portugal podiam morrer até 200 mil pessoas, vinte vezes mais dos que as que já morreram, a grande maioria nas faixas etárias acima dos 50 anos.

Uma outra estratégia tem sido sugerida e mesmo adoptada por alguns países no combate à pandemia. Alguns medicamentos já existentes e já aprovados para outras doenças poderiam também ser eficazes contra o vírus SARS-Cov-2. Foram, desde muito cedo nesta pandemia, identificados alguns medicamentos potenciais candidatos para a profilaxia e/ou tratamento da doença. Porém, e segundo a prática médica e farmacológica, até serem aprovados para utilização, teriam que cumprir todas as fases da investigação, desde o ensaio “in vitro” até aos ensaios clínicos, publicação, “peer-review”, etc., só sendo aprovadas em caso de comprovada eficácia e segurança.

Contudo, e uma vez que muitos desses medicamentos já foram dados como seguros para outras doenças, eles têm sido utilizados sem aprovação específica para a doença, apenas com base em ensaios clínicos muito limitados, cujos resultados foram publicados em revistas especializadas mas que, por serem pouco extensos, não levaram à sua aprovação, mantendo-se em relação a esses medicamentos a contra-indicação das autoridades e dos institutos de saúde.

Como ultrapassar estes entraves que, podendo haver um medicamento eventualmente capaz de salvar milhares de pessoas, fazem com que potenciais curas sejam “bloqueadas” pela burocracia, quando o único risco que se corre é que elas sejam apenas placebos para a doença? Existem argumentos que suportam o bloqueio, entre eles o de que alguns medicamentos podem ser prejudiciais, outros podem criar resistências de patogénicos ao medicamento ou ainda exacerbar efeitos colaterais dos medicamentos, ou criar uma falsa sensação de segurança que leva a baixar a guarda, para só citar alguns.

Tão pouco existem recomendações oficiais em relação a suplementos como vitaminas ou substâncias que possam fortalecer as defesas orgânicas, mantendo-se como exclusivas as medidas não-farmacológicas de higiene, isolamento e máscara. Mas sendo os suplementos de venda livre, as pessoas podem individualmente optar por tomá-los se os puderem adquirir, mas torna-se impossível avaliar qual o impacto que elas têm ou terão na pandemia.

Uma outra abordagem que poderia ser considerada para a descoberta de uma cura, se é que existe, e ultrapassar a burocracia da aprovação morosa de medicamentos, seria o estudo da heterogeneidade da evolução da pandemia nos vários países e tentar explicar a discrepância dos seus êxitos ou fracassos. A dificuldade que aqui se põe é a fiabilidade dos dados estatísticos existentes que podem estar a ser “filtrados” de forma diferente, tornando mais difícil e pouco fiável a análise. Mas a definição prévia de critérios a que devem obedecer essas estatísticas talvez permitisse uma análise com margens de erro aceitáveis. Uma tal análise poderia relacionar a evolução da pandemia com diversas variáveis como clima, densidade de população, hábitos alimentares, as medidas de contenção tomadas, os medicamentos usados, etc.

Particularmente, no que respeita aos medicamentos ou suplementos usados em larga escala nos diferentes países, a análise iria funcionar como um ensaio clínico gigantesco que podia não dar certezas sobre a eficácia individual de uma substância, mas sobre o seu efeito geral nos números da pandemia, sobretudo em relação a casos graves e mortes. Se eventualmente se verificasse uma determinada “eficácia de grupo” de uma substância, parece-me que se poderiam poupar milhares de vidas em todo o mundo e essa devia ser a preocupação das autoridades sanitárias, e não andarem simplesmente a bloquear burocraticamente a utilização de medicamentos que já provaram ser seguros, ou desaconselhar medidas farmacológicas que eventualmente podem trazer esperanças.

Há países populosos em que a classe médica optou por prescrever medicamentos e suplementos que não estão aprovados nem aconselhados nem pela OMS nem por outra instituição de saúde com renome internacional. Simplesmente acharam que era melhor que nada. Como evoluiu a pandemia nesses países? Como evoluiu nos países que optaram por “lockdowns” rigorosos e restrição de liberdades? Como evoluiu em países quentes e húmidos, quentes e secos, frios e húmidos, frios e secos? Como evoluiu em países que comem mais peixe? Como evoluiu em países ricos e em países pobres? A concentração nas grandes cidades é prejudicial? Porque é que os lares foram mais afectados? Desleixo, alimentação, falta de sol? Haveria muito mais questões que podiam ser estudadas e ajudar a estabelecer um padrão de conduta, numa luta contra o tempo mas que de certo ajudaria na tomada de decisões dos governantes e nos conselhos que podiam ser dados às pessoas.

Termino este artigo desejando que, na próxima pandemia de outro patogénico qualquer, deixem os profissionais de saúde de cada país decidir sobre como conter a doença, com recurso ou não a medicamentos ou suplementos ou com o recurso a medidas higiénicas ou outras medidas apropriadas. E que se procure, tão depressa quanto seja possível a “eficácia de grupo” das medidas, com o acompanhamento da evolução da pandemia nos diversos países afectados, identificando o que correu bem ou menos bem e porquê, de modo a aconselhar sem preconceitos científicos, políticos ou económicos! Seria mesmo desejável um protocolo dividido em fases, em que na primeira fase fossem identificadas “in vitro” as potenciais medidas (farmacológicas ou não) e se avançasse rapidamente para os ensaios clínicos em larga escala, a nível dos países, que permitissem identificar quais as medidas com efeitos mais positivos na contenção da pandemia. Isto porque a aprovação de medicamentos, suplementos ou medidas com base nos actuais protocolos que exigem tanto tempo e dinheiro, nunca chegarão a ter qualquer eficácia. A aposta nas vacinas pode estar comprometida pelo aparecimento das variantes e pela dificuldade de produzir as vacinas em tempo útil! De qualquer forma, seja esta ou outra, há que considerar uma estratégia de pandemia diferente das actuais e que permita atacá-la de forma mais eficaz em tempo útil!

Henrique Sousa

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Sub-diretor do Inconveniente

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