Portugal é fiável?

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O antigo colunista da revista brasileira Veja, Roberto Pompeu de Toledo, escrevia sobre Lula na edição de 11-8-2010 para dizer o seguinte: “Ninguém mais entusiasmado com o personagem Lula do que o próprio Lula. Ninguém mais embalado no mito Luiz Inácio Lula da Silva do que Luiz Inácio Lula da Silva”. O que o articulista escreveu sobre o antigo presidente brasileiro – agora de regresso à cena política após a anulação das condenações da Justiça Federal do Paraná – podia ser dito sobre José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa. Desde que o juiz Ivo Rosa leu a decisão instrutória em 9-4-2020, Sócrates volta a agitar as águas ao seu gosto, com a conhecida linguagem de “animal feroz”.

Por muito que esbraceje, grite, profira palavras ameaçadoras, desanque em quem odeie, Sócrates não muda a percepção que se tem dele. Por isso, porque no primeiro momento achou que o juiz lhe deu razão e, assim, se libertaria da má fama que o atormenta, não se cansou de repetir, enraivecido, as frases que preparou para dizer à saída do edifício do tribunal: “As grandes acusações ruíram e com fulgor. Prenderam, difamaram durante sete anos um inocente”. Outra afirmação: ”A acusação teve uma motivação política que é muito clara. Todas as mentiras contadas aos portugueses são falsas”. Não escaparam à sua fúria palavrosa o Ministério Público (MP) e a comunicação social.

Lá temos de aguentar a lenga-lenga do costume, num esforço para demonstrar, com a sua habitual verborreia, o quanto se sente injustiçado. Sócrates sempre criou “narrativas” de vitimização, mas, desta vez, está bem sedento de fazer sangue com a reposição dos nomes de quem, de uma maneira ou de outras, o decepcionaram ao longo do processo. Sempre foi assim: quando se está em perda de valor na praça, são mais os afastamentos do que as aproximações. Os altos cargos públicos dependentes do voto popular não são eternos, mas, pior ainda, quando se leva o país à situação de insolvência, como fez José Sócrates, obrigando Portugal a recorrer à intervenção externa, com as consequências que conhecemos.

De José Sócrates pode-se dizer o que escreveu o economista norte-americano, Thomas Sowell: “É difícil imaginar uma maneira mais perigosa de tomar decisões do que deixá-las nas mãos de pessoas que não pagam o preço de estarem erradas”. Com a vinda da Troika em 2011, em situação de emergência a pedido do ex-primeiro-ministro para ajudar a sanear as contas públicas, os portugueses pagaram, com muito sacrifício, um preço muito elevado pelo esbanjamento de recursos financeiros em projectos megalómanos que acabaram em ruína. Ainda hoje, Sócrates vive nessa megalomania, como se a sua responsabilidade fosse nula no empobrecimento que o país viria a conhecer a seguir.


“Mercadejar do cargo”

A leitura da decisão instrutória por Ivo Rosa estava a correr tão bem para Sócrates que, certamente, nunca lhe terá passado pela cabeça que o juiz lhe havia reservado uma surpresa desagradável para o fim. Foi acusado de três crimes de branqueamento de capitais e três crimes de falsificação de documentos. Os termos usados no despacho de pronúncia para justificar a acusação confirmam a percepção que existia sobre os empréstimos em dinheiro, na ordem de 1,7 milhões de euros, que Carlos Santos Silva fez a José Sócrates. Segundo o juiz, a entrega em numerário desse dinheiro, em vários levantamentos, indicam “o existencialismo de um mercadejar do cargo“ e quem o proporcionava “tinha como base constituir uma vantagem” junto do chefe do Governo. Ou seja, conclui-se que Sócrates fez negócio com o próprio cargo.

A euforia evidenciada à saída do Campus da Justiça secou rapidamente e, num artigo da sua autoria no Público, em 12-04-2021, já reagiu desta maneira: “No entanto, o juiz de instrução não resistiu à tentação de criar novas acusações. Pronuncia-me por um crime de que nunca estive acusado e do qual nunca me pude defender. Transforma o alegado ‘testa de ferro’ em ‘corruptor’ sem comunicar aos visados esta alteração de factos. Passei sete anos a defender-me da mentira da fortuna escondida e no final ouço, pela primeira vez, que há indícios (que alguns imediatamente transformam em provas e em sentença transita em julgado) de um crime que já prescreveu. Essa acusação é tão injusta e falsa como as outras.”


Acórdão do TC quase desconhecido

Quem seguiu em directo pela televisão a comunicação de Ivo Rosa não deixou de ficar estupefacto com o conteúdo da decisão, ao destruir as provas avançadas pela investigação do MP. Deixou cair 25 dos 36 crimes imputados a José Sócrates. Numa síntese que circulou nas redes, alguém descreveu, com ironia, o processo de decisão daquele magistrado do seguinte modo: “Se existe acusação, esta não é válida; se é válida, não há provas; se existem provas, foram obtidas de forma imprópria; se não foram obtidas de forma imprópria, não são suficientes; se são suficientes o crime já prescreveu”. O elevado número de prescrições, invocando um controverso acórdão do Tribunal Constitucional (TC) de recente data que quase ninguém conhecia, invalidou praticamente a acusação e, até, os “originadores de dezenas de milhões de euros”, como lhes chama José Veiga Sarmento no Público, de 13-04-2021, se safaram, não indo a julgamento.

O MP recorreu do despacho de pronúncia para o Tribunal da Relação e, enquanto decorre a apreciação, muitas questões se colocam sobre a situação da Justiça em Portugal. Entre as muitas surpresas, o despacho de pronúncia de Ivo Rosa expôs o acórdão 90/2019 do TC como peça fundamental para justificar a declaração de prescrição dos três crimes de corrupção passiva imputados a Sócrates. No Correio da Manhã, de 11-04-2021, Eduardo Dâmaso qualificou o referido acórdão “uma fábrica de impunidade”. E explicava: “Os juízes Cláudio Monteiro, antigo deputado do PS, e Teles Pereira, antigo director dos serviços secretos indicado por um Governo socialista, criaram uma tese sobre o momento a partir do qual se devem contar os prazos da prescrição que remete o combate ao crime económico para a paralisia total”. Por isso, quando o MP fez a acusação, os crimes já estavam prescritos.

Se a questão dos prazos de prescrição agita agora o debate sobre o funcionamento da Justiça no nosso país – de assinalar ainda que a juíza Fátima Mata Mouros votou vencida o aludido acórdão, por entender que o TC estava a desvirtuar a sua função – a repercussão externa dos últimos acontecimentos só pode acentuar dúvidas sobre se Portugal será capaz de combater a corrupção, quando as instâncias europeias se mostram apostadas em evitar o surgimento de novos casos de corrupção através da aplicação dos milhões da ‘bazuca’. A recente criação da Procuradoria Europeia teve por finalidade “a cooperação entre os Estados-membros no combate aos crimes que prejudiquem os interesses financeiros da UE”. Funciona como um Ministério Público “independente e altamente especializado”. Contra as regras estabelecidas, Portugal começou mal ao governamentalizar a escolha do seu representante naquele órgão. A nomeação portuguesa foi amplamente contestada no Parlamento Europeu.


O problema da má fama

Mas há mais casos no passado que não favoreceram a nossa imagem. Como exemplo, em Setembro de 2000, o empresário Américo Amorim (1934-2017) e dois dos seus gestores viram anulados pela Relação do Porto, por prescrição, os crimes de fraude, falsificação de documentos e desvio de subsídios do Fundo Social Europeu. O processo arrastou-se desde 1989, tendo levado mais de nove anos para ser formulada a primeira acusação do MP, que tinha por base a utilização, alegadamente fraudulenta, de cerca de meio milhão de contos para formação profissional, entre 1985 e 1988. A UE havia-se constituído como assistente exigia uma indemnização e juros respectivos, a contar desde 1987. José Augusto Moreira, o jornalista do Público que deu a notícia em 30-9-2000, acrescentava esta conclusão: “Uma decisão que põe fim a um dos casos mais mediáticos da justiça portuguesa, e acaba também de ser o espelho fiel do emaranhado de trâmites e decisões em que se enredam os nossos tribunais, que tem permitido que os ricos e poderosos passem ao lado do escrutínio da justiça.”

Portugal, um país fiável? O problema é quando a má fama se nos cola e damos motivos para isso. A percepção que outros têm de nós é construída a partir dos nossos actos e, numa sociedade aberta, estamos permanentemente sob observação. Os denominados países “frugais”, nossos parceiros na UE, criaram desconfianças quanto aos nossos comportamentos que obviamente só nos vulnerabilizam. O rigor na utilização dos dinheiros públicos, a transparência de processos, assim como o funcionamento da Justiça portuguesa, são elementos essenciais na formação de uma imagem que cada qual avaliará à sua maneira. Mas nunca podemos esquecer que os factos são sempre determinantes nessa avaliação.


Francisco Menezes

* O autor usa a norma ortográfica anterior.

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