Os cordeiros da Ciência e o chamado emprego científico

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A sociedade moderna ausculta-se com métricas. O número de sapatos, o número de amigos nas redes sociais, o número de carros ou casas, os números na conta do banco. Naturalmente, os números facilitam a simples atividade da comparação: um indivíduo a outro, um país a outro. Com base nestes cálculos sofisticados estabelecidos por burocratas, temos os ingredientes para o derradeiro inferno das métricas: é que estas levam-nos a trabalhar obstinadamente para alcançar determinados objetivos e, pelo caminho, vamos atribuindo menor importância a outros fatores, como sendo a qualidade no que se está a fazer e o que é que acontece aos peões desse jogo. A Ciência padece enormemente deste bicho que são as métricas e, por efeito de escala, Portugal sendo um país pequeno, a Ciência (tal como a Arte) ressente-se muito mais.

Mas o que é isto do emprego científico? É todo o emprego em que o prestador de serviços é detentor do grau de doutoramento e este executa tarefas no âmbito da sua experiência académica em investigação e/ou inovação em Ciência. O emprego científico está hoje estatuído pelo Regulamento n.º 607-A/2017, revisto no n.º 985-B/2019. Este regulamento é a terceira alteração ao Regulamento do Emprego Científico e pretende revitalizar o Sistema Científico e Tecnológico Nacional, atraindo e fixando recursos humanos altamente qualificados para instituições ou empresas portuguesas. Como funciona o emprego científico? À semelhança de outras áreas, o emprego científico pode subdividir-se no emprego privado e no público. Sobre o emprego privado, a sua existência resulta de fatores de mercado, e a fixação de doutorados aqui é ainda reduzido, distribuindo-se entre empresas e Ensino Superior privado. Em 2013, menos de 4% (quase 1000 num universo de 25.000) dos doutorados estavam em empresas e estima-se que ainda não se tenha ultrapassado os 5% (global). No que diz respeito ao emprego científico público, podem ser contratados diretamente para funções no estado ou contratados para Universidades ou outros Institutos de investigação através de concursos, ora no âmbito de um projeto, ora de âmbito institucional ou por concurso individual a uma entidade financiadora pública.

Apesar do enorme universo de investigadores em doutoramento que executam trabalho fundamental nos institutos, estes continuam a ser tratados como meros estudantes e por isso as políticas de emprego científico não recaem sobre eles, mas apenas sobre aqueles que já detêm o grau de doutoramento. A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) tem estabelecido uma série de programas para ir ao encontro desta necessidade de emprego. De 2007 a 2009 tivemos o programa Ciência. 1200 investigadores foram financiados durante 5 anos. De 2012 a 2015 tivemos o Investigadores FCT (IF). Em 4 concursos foram celebrados cerca de 800 contratos. Desde 2017 temos o Concurso Estímulo Emprego Científico (CEEC), que na primeira edição visava a celebração de 500 contratos, em 2018 e 2019 apenas 300 em cada ano e em 2020 volta a subir para 400 contratos (ainda a concurso, resultados previstos para 2022). Pelo meio, surgiu também a chamada Norma Transitória (NT) do Decreto-Lei n.º 57/2016, alterado em 2017. Esta norma permitiu a contratação de milhares de investigadores, sendo que boa parte da execução da FCT para a NT teve lugar em 2019. Apesar desta ser, como o nome indica, transitória, a verdade é que consistem em contratos a termo certo, sem uma transição concreta de integração na carreira científica. Pelo caminho ficou o PREVPAV, uma iniciativa que visava terminar com situações de precariedade aliadas às reais necessidades das instituições públicas, mas cuja execução ficou muito aquém do que era esperado (e desejável).


Como chegámos aqui?

Devido ao posicionamento de Portugal na União Europeia surge uma certa necessidade de seguirmos posições e estratégias conjuntas e, por força disso, nos compararmos a outros países-membros. Este exercício é geralmente benéfico, mas apenas até certo ponto. Como parte dos objetivos do H2020, Portugal deveria alcançar a meta de investimento equivalente a 3% do PIB em investigação e desenvolvimento (em 2018 este valor era de 1,35%), alinhando-se com a média europeia. Este investimento é na realidade benéfico e necessário, mas talvez o mais preocupante é a forma como se vai lá chegar e o salto (de gigante) que se pretende dar face ao que foi feito até hoje. Devemos, pois, refletir sobre que efeitos é que esta política “de empurrão” vai ter na qualidade da Ciência e o que significará para as gerações futuras.

Muito daquilo que é a estratégia do atual ministério, organizado no Programa de Estímulo ao Emprego Científico e na estratégia para a Ciência e Tecnologia, advém do relatório encomendado à OCDE – Organização para a cooperação e desenvolvimento económico – Review of Higher Education, Research and Innovation: Portugal. Neste relatório de 268 páginas podem ler-se diversas considerações sobre o sistema científico e de educação superior portugueses, inclusivamente alguns aspetos que foram considerados preocupantes: a chamada endogamia, ou seja a falta de circulação dos investigadores (recém-formados) entre instituições, e a falta de posicionamento e estratégia na abertura de concursos (doutorais e pós-doutorais); ou seja, a inexistência de critérios percetíveis ou estratégia a longo prazo nos concursos FCT.

Temos ouvido o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, reiterar que existe um compromisso muito forte para assegurar um aumento do investimento privado e público naquilo a que se chama o emprego científico e também o próprio financiamento da Ciência. Em 2018 a despesa total em investigação e desenvolvimento fixou-se em cerca de 2.769 M€. De ressalvar que nos últimos anos quase 30% do que é a execução do investimento da FCT, a entidade financiadora nacional, é proveniente de fundos comunitários. E a novidade para 2021 é que esta quota suba a 61%, correspondendo a um financiamento comunitário de quase 248 M€ num total de 668 M€. Esta proposta visa aumentar em quase 25% o investimento da FCT desde o ano anterior. Uma fatia importante deste investimento (cerca de 40% do investimento da FCT) vai ser aplicado em mão de obra, investindo em carreiras científicas, quer por atribuição direta de bolsas, quer por contratos (emprego científico).


O aumento da procura por carreiras científicas ou académicas

Voltemos um pouco atrás. Será que foram as medidas do ministério em 2005 (DL 74/2006) ou será que foi a crise económica de 2008 que impulsionou a procura de doutoramentos? A história do ovo e da galinha é um clássico e pode ser aqui aplicado. A verdade é que os dois anos antecedentes à crise de 2008, em que a economia nacional já estagnava, e depois com a queda “a pique” de oportunidades de emprego entre 2008 e 2011 fez com que muitos jovens investissem mais nos estudos pós-graduados (isto vê-se no número de doutoramentos concluídos logo a partir de 2010 em diante). E curiosamente é no período de 2009 a 2012 que se observa uma redução no número de bolsas de doutoramento atribuídas pela FCT, o que não alimenta a tese de estratégia para o ensino superior. A realização de um doutoramento, ainda que financiado através de uma bolsa de estudos, fazia com que não estivessem desempregados ou sem rendimento. Assim, 10 anos após a crise económica de 2008/2009, vimos o número de doutorados por ano duplicar, estando já acima dos 2000 por ano. Ora, uma das métricas que Manuel Heitor está a seguir para medir “o sucesso” do seu programa é o de aumentar esta cifra para 4000 doutorados por ano até 2030 (aproximando-se dos objetivos e estratégia europeus).

Tanto doutorandos como investigadores pós-doutorados são posições ou categorias profissionais ainda muito mal reconhecidas em Portugal (apesar dos esforços da ABIC e dos próprios investigadores e do Regulamento do Emprego Científico de 2017). Prova disto é que, e ao contrário do que Manuel Heitor reitera como “sendo as melhores práticas internacionais”, oferecer como contrapartida àqueles trabalhadores essenciais do sistema Ciência e Tecnologia uma bolsa no lugar de contratos de trabalho é degradante e está completamente desalinhado das práticas de outros parceiros europeus (França, Espanha, Alemanha, Itália). E porquê? Bom, voltamos aos burocratas e àqueles que passam os dias a fazer continhas. Uma bolsa sai bem mais barata que um contrato de trabalho, não só durante a duração da mesma como após. Um aluno de doutoramento em Portugal com bolsa FCT custa, em média, 16 000 euros por ano. Se fossem estabelecidos contratos, seguindo a tabela remuneratória da função pública e o DL 124/99, optando pela categoria profissional de investigador estagiário, este iria custar ao estado cerca de 28 000 euros por ano. Parece assim pura conveniência evitar transitar para um regime em que estes investigadores de doutoramento beneficiam de um contrato de trabalho, realizando descontos apropriados e, findo esse contrato, com possibilidade de beneficiarem de fundo de desemprego. É que se o ministro optasse por esta solução, iria ter um problema em cumprir com a tal meta dos 4000 doutorados por ano para 2030 (ou mesmo 2040!), mantendo os restantes compromissos. De onde viria o financiamento extra?


A pertinência destas questões para Portugal

Portugal quer aumentar o seu investimento em inovação e investigação de base – até para impulsionar a economia – pelo que precisa de pessoas qualificadas. A Ciência em Portugal não irá conseguir evoluir sem estas pessoas – os quadros fixos têm responsabilidades letivas e administrativas, pelo que têm pouca disponibilidade para a investigação como esta carece. No entanto, a avaliação de universidades e institutos de investigação cada vez mais se mede pela produção científica (por exemplo, número e impacto dos artigos científicos) e financiamento internacional obtido (que depende da produção científica), não apenas da taxa de sucesso em número de alunos formados. Sem uma produção científica de excelência, que não pode ser alcançada sem esta massa crítica, as universidades e outros institutos de investigação ficam sem uma fonte de financiamento extra ao orçamento de estado. E isto acarreta problemas estruturais gravíssimos. É bom que se tenha a noção que em alguns institutos públicos portugueses chega-se à degradação de não haver papel higiénico ou sabão nos WC, ou de se ter que reutilizar luvas e outros consumíveis nos laboratórios!

Assim, subvertemos o sistema. Apesar de serem essenciais no exercício da investigação e das próprias avaliações das instituições, são os investigadores de doutoramento e pós-doutoramento os mais descartáveis, mais precários e que, entre concursos que muitas vezes se estendem além dos 8 meses (assunto para outro artigo), continuam a aguardar pela sua oportunidade de emprego justo. É que com esta estratégia, o ministro Manuel Heitor vai colocar no mercado ainda mais gente com esta alta qualificação sem que o mercado os consiga absorver. O chamado “colocar a carroça à frente dos bois”. Isto é na realidade trabalhar para o desemprego científico. Relembro que para já apenas 5% dos doutorados estão em empresas e que não será na próxima década que veremos este valor sequer duplicar (até porque vamos formar a uma taxa superior daquela que tem sido até agora). Aliás, na opinião do tecido empresarial, os doutorados que se formam não estão, em média, adaptados à realidade empresarial e por isso não são atraentes. Mas, como queremos responder a métricas até 2030, vamos então alcançar a meta dos 4000 doutorados por ano, sem lhes proporcionar carreira (quer no privado, quer no público), alimentando a máquina da Academia, trazendo o financiamento que falta para as Universidades terem papel higiénico nos WC e destruamos os sonhos e aspirações de todos os jovens talentosos que aí vêm pelo caminho. São estes os cordeiros da Ciência.


Inês Pereira
Investigadora pós-doutorada em França

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Latest comments

  • A solução para o pleno emprego dos Doutorados que vão sendo produzidos pelas Universidades não é fácil, reconheço. O que espanta é que os governos passam sem que um deles que seja ensaie medidas que vão para além de “pensos rápidos de curta duração”.

  • Apesar do Manuel Heitor até querer deixar trabalho feito e políticas que durem, a verdade é que está a tentar corrigir problemas graves que vêm de trás, ao mesmo tempo que quer manter estes compromissos e métricas. E o emprego dos Doutorados está ainda mais complicado pelos processos altamente morosos nestes concursos: entre candidaturas e resultados definitvos passa mais de 1 ano; isto implica que os contratos se celebram muito depois da data do concurso (por exemplo, ceecs de 2018, fechou o concurso em 2019 e os contratos foram assinados em 2020…) – é assim que se pretende apoiar os investigadores? É esta a “melhor” política para a Ciencia? E entre contratos o que fazem estas pessoas? … como sabes, muitos continuam a trabalhar sem vencimento.

  • “sem que um deles que seja ensaie medidas que vão para além”

    Todos os governos estão certos de estarem a ensaiar medidas que vão para além…

    A única coisa que os governos não militam é no deixar de meter o bedelho na vida alheia e de se armarem em timoneiros do mundo em geral e dos tugas em particular, começando por lamber as botas aos super-timoneiros de Bruxelas, da ONU, da OMS, etc.

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