Falar de racismo é uma tarefa ingrata nos dias que correm porque é um tema que não é apenas sociológico ou humanista. Afeta de forma indelével os poderes instituídos, sejam eles os dos partidos ou das instituições da sociedade civil, incluindo a comunicação social. E traz recordações incómodas para muita gente que preferia ver este tema inconveniente varrido para debaixo do tapete.
Poderíamos começar por falar das raízes do racismo, o que seria interpretado como uma busca de justificação histórica para aquilo que hoje não se pode, nem se deve, justificar. Apesar de ser uma prática que remonta aos primórdios da Humanidade, de nada serve invocar a sua origem, seja ela qual for, para se perceber um fenómeno que aos olhos do presente é uma perfeita aberração. Seria o mesmo que tentar branquear o canibalismo, a escravatura, o aborto e a eutanásia, explicando as suas origens.
Vamos, por isso, abordar a questão de saber se o racismo existe ou não, se ele está entre nós e como é que se manifesta. Mas não nos vamos ater a atos isolados considerados racistas, como foi o caso recente de George Floyd, nos EUA, e a outros atos de violência que envolvem indivíduos de “raças” diferentes, seja lá o que for que signifique “raça” no contexto humano, depois da barbárie do nazismo há oito décadas atrás.
Se ser de uma certa “raça” significar apenas ter caraterísticas fisionómicas e antropobiológicas próprias, embora se pertença à mesma espécie, isto é, capazes de se cruzar entre si, podemos aceitar que sim, que a espécie humana é constituída por várias raças.
O que não é aceitável, nem tem uma explicação minimamente razoável, é que uma raça não reconheça outra como sendo apenas uma variante da sua própria espécie, com a mesma dignidade. A mesma dignidade e as mesmas características que a primeira pensa que tem, mas a outra não. Entre estas características estão a consciência, a inteligência, a capacidade de aprender e de sentir de igual forma, sofrer, amar ou até odiar.
O Homem, consciente da sua superioridade intelectual sobre outras espécies animais e, convicto que elas não sofrem com a mesma consciência, não se importa de as usar para a satisfação das suas necessidades. Pode ser um cão que é transformado em animal de companhia ou auxiliar de tarefas várias, mas também podem ser vacas, porcos, galinhas, peixes ou moluscos que até lhe servem de alimento. Assim, o Homem pode, com uma justificação ética, possuir animais e dispor deles como lhe aprouver porque não lhes reconhece as mesmas características intelectuais e sentimentais da sua espécie. A isto poderia chamar-se de especismo. O especismo justifica a escravatura dos animais e a sua utilização para satisfação das necessidades humanas.
O racismo teve, no passado, muito em comum com o especismo. Havia raças que consideravam outras como inferiores em termos intelectuais e sentimentais, justificando assim a ética com que tratavam outras – como um gado que servia para satisfação das necessidades das raças superiores.
O racismo é, no fundo, pensar que existem hierarquias humanas, raças que, pelas suas características fisionómicas, são mais humanas que outras, que pensam ou que sentem melhor, são superiores. Isto não passa, porém, de um mito. Pessoas de todas as raças têm inteligência e sentimentos muito idênticos. O racismo com base em características fisionómicas não tem, por isso, qualquer base racional e, muito menos se pode defender do ponto de vista ético, por mais voltas que se dê.
Mas haverá, então, racismo ainda? Sim! Para isso, basta que uma “raça” se julgue superior (mais humana) que outra ou outras. Mas também haverá racismo se uma raça se julgar inferior ou julgar que é considerada inferior.
Quando um criminoso é morto por um polícia, estamos perante um ato racista? No contexto politicamente correto atual, dir-se-ia que sim: o polícia considera-se de uma “raça” superior à do ladrão e pode ser que também o criminoso se considere de uma raça inferior ou mesmo desprezada pela dos polícias. Isto, independentemente das características biológicas dos dois. Não foi o racismo étnico ou outro que esteve em causa, foi apenas uma “raça” a impedir a outra de cometer um crime, ou seja, nesa leitura absurda, um ato de racismo “profissional” necessário para garantir a segurança de todos os cidadãos, qualquer que seja a sua raça.
Quando a escravatura é tolerada por um governo porque sem ela não seria possível realizar milhões de euros com a produção e exportação de frutas e frescos, estamos perante o mais hediondo racismo, que pactua com o tráfico internacional de escravos, tratados precisamente como gado, a viver em estrebarias, com vinte ou mais rezes dentro de um curral feito só para três. Isto é o que se chama de racismo sistémico, institucional e legalmente democrático. O caso de George Floyd é, comparado com o que nos mostram nas TVs a partir de Odemira, apenas um caso isolado que foi empolado pelos média. Mas onde estão agora os movimentos antirracistas?
Quando se resolve fazer um aborto, estamos perante um ato de racismo? Acho que sim. Quem mata um feto considera-se de uma raça superior à do feto e pode, por isso, dispor da sua vida. Mas, neste caso, o feto nem é inferior nem se acha desprezado pelos seus algozes porque é absolutamente inocente e não cometeu qualquer crime nem colocou a vida de outrem em risco.
Quando se decide praticar a eutanásia, estamos perante um ato de racismo? Sim. Sem dúvida, é racismo pensar que se pode tirar a vida a alguém que não cometeu crime algum nem colocou em risco a vida de outros. Há, nesse ato, a presunção de uma superioridade em relação a outro ser da mesma espécie que, embora possa estar debilitado, não pode ser tratado como um cavalo a abater…
Parece-me,então, que vivemos numa sociedade onde a escravatura é legal, o aborto é legal, a eutanásia é legal, mas a tourada é ilegal e os touros e cavalos gozam de mais dignidade que as pessoas. Isto sim, isto é que é racismo da pior espécie!
Henrique Sousa