O Sri Lanka é apenas um exemplo

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A 15 de julho de 2022 o presidente do Sri Lanka, Gotabaya Rajapaksa, renunciou formalmente, fugindo do país por causa dos protestos generalizados.

O homem que o substituiu, o primeiro-ministro, e agora presidente, Ranil Wickremesinghe, enfrenta também pedidos de demissão, na sequência de turbulências políticas e económicas.

Embora o drama tenha aumentado em poucos dias – durante o qual o palácio presidencial e a residência do primeiro-ministro foram ocupados por manifestantes – a crise desenrola-se desde há anos, segundo Neil DeVotta, um professor de política e assuntos internacionais da Universidade Wake Forest, entrevistado por The Conversation US. DeVotta cresceu no Sri Lanka e é especialista em política sul-asiática.

Reproduzimos, com a devida vénia ao The Conversation US, essa interessante entrevista, em tradução livre e atualizada face a novos dados como a recente eleição (por votação secreta do parlamento), em 20-7-2022, do novo presidente do Sri Lanka, Wickremesinghe:

Pode nos falar sobre os últimos acontecimentos?

O que aconteceu no Sri Lanka foi realmente revolucionário. Pela primeira vez na história do país, houve um presidente a renunciar – e da forma mais humilhante. Gotabaya Rajapaksa tinha anunciado anteriormente a sua intenção de renunciar, mas não o fez imediatamente, porque uma vez que ele o fizesse, perderia a sua imunidade presidencial na acusação. Em vez disso, ele fugiu do país, primeiro para as Maldivas e depois para Singapura. Alguns afirmam que ele pode agora estar a procurar chegar à Arábia Saudita – tudo isso é um pouco irónico, dado que Dubai, as Maldivas e a Arábia Saudita são estados muçulmanos e, durante o seu mandato no poder, Rajapaksa foi acusado de encorajar a islamofobia afim de permanecer no poder.

O catalisador por trás disto tudo foi um movimento de protesto. Desde então, os manifestantes abandonaram a residência oficial do presidente e do primeiro-ministro, mas o movimento de protesto só conseguiu parcialmente os seus objetivos. Queriam que Rajapaksa e os seus irmãos abandonassem o poder. Mas muitos também queriam a expulsão do primeiro-ministro Wickremesinghe.

Em vez disso, Wickremesinghe, que não foi eleito como parlamentar e conseguiu um assento através de uma lista nacional que lidera a legislatura, foi agora empossado como presidente interino. Assim, um homem sem mandato – o seu partido obteve apenas uma pequena fração dos 11,5 milhões de votos válidos na eleição de 2020 – é agora presidente interino e vai acabar no cargo até 2024 por meio de uma votação secreta do Parlamento do Sri Lanka realizada a 20 de julho de 2022.

Qual foi a faísca para a crise?

A faísca foi realmente desencadeada em abril de 2021, quando Rajapaksa anunciou a proibição de fertilizantes, herbicidas e pesticidas.

Sucessivos governos do Sri Lanka têm vivido há muito tempo além das suas possibilidades e empregando uma estratégia de reestruturação de dívidas para manter o país à tona – em suma, o país estava a contar com novos empréstimos, além das receitas do turismo e das remessas de emigrantes, para ir pagando a sua dívida.

Mas depois veio a COVID-19 que afetou severamente o turismo e contribuiu para aquilo que os economistas chamam de crise do equilíbrio de pagamentos. Por outras palavras, o país não conseguiu pagar as importações essenciais nem pagar a sua dívida. Isso pressionou o governo a anunciar abruptamente a proibição de herbicidas e fertilizantes – algo que eles esperavam que economizaria ao país 400 milhões de USD em importações anualmente. O presidente já havia anunciado que a mudança para a agricultura orgânica ocorreria ao longo de 10 anos. Em vez disso, foi implementada abruptamente, apesar dos avisos sobre o impacto que teria sobre os rendimentos agrícolas.

Isso levou a protestos dos agricultores a que se juntaram sindicatos. A crise do saldo de pagamentos foi muito além da agricultura. Chegou ao ponto de o governo não poder pagar importações, levando à escassez de medicamentos e leite em pó. E isso levou pessoas de outros setores a protestar.

Além disso, o governo estava imprimindo dinheiro para pagar mercadorias. Isso inevitavelmente levou à inflação – que está acima de 50%.

O ponto de viragem ocorreu quando as pessoas descobriram que já não conseguiam pagar o gás de cozinha e o combustível. Há algumas semanas, o governo anunciou que forneceria combustível apenas para serviços essenciais, fechando escolas e ordenando que os trabalhadores ficassem em casa.

Então essa foi uma crise puramente económica?

Quase. Embora a faísca tenha sido uma crise de equilíbrio de pagamentos, acredito que sustentar a “balbúrdia” é um etnonacionalismo profundamente enraizado que permitiu e incentivou a corrupção, o nepotismo e o curto prazo.

Desde pelo menos a década de 1950, o Sri Lanka tem estado nas garras do nacionalismo budista cingalês. Os cingaleses compõem cerca de 75% da população, com os tamil em torno de 15% e muçulmanos em cerca de 10%.

Os cingaleses têm sido favorecidos desde há muito tempo no acesso a universidades e nos cargos governamentais. Isso tem sido feito em detrimento não só das minorias do país, mas também de sua governação. E provocou decadência no funcionamento do Estado. O Sri Lanka consagrou um sistema que desconsidera o mérito e enraizou-se a etnocracia (governo por um grupo cultural dominante). E isso ajudou a espalhar o nepotismo e a corrupção.

O facto dos irmãos Rajapaksa terem ajudado brutalmente a suprimir e a derrotar uma revolta tamil que durou três décadas reforçou as suas credenciais entre os nacionalistas budistas cingaleses e consolidou o seu poder.

Essa guerra civil, que terminou em 2009, também contribuiu para a crise atual. O governo do Sri Lanka gerou défices nacionais para financiar a contra-revolta.

Após a guerra, os Rajapaksas procuraram desenvolver o país, construindo infraestruturas. O que o país conseguiu, em vez disso, foi “blingfrastructure” – projetos de vaidade, muitas vezes financiados pela China, que eram dominados pela corrupção e com derrapagens orçamentais. Um desses projetos é um aeroporto, todavia com poucos aviões a pousar ou a descolar. Visitei o Aeroporto Internacional Mattala Rajapaksa em 2015, e as únicas outras pessoas que lá vi eram de um autocarro cheio de alunos de uma escola em excursão. Nada mudou desde então.

Outros projetos desperdiçados incluem um centro de conferências e um campo de críquete – chamado Mahinda Rajapaksa International Cricket Stadium – não muito longe do aeroporto de Mattala onde não há quase nada. E depois há a Lotus Tower, a torre de comunicações mais alta do sul da Ásia, que deveria conter outras instalações e foi inaugurada com pompa em 2019, mas permanece fora de operação.

A construção desses projetos tem sido marcada por imputações de corrupção. Tais projetos envolviam, em grande parte, empresas de construção chinesas, muitas vezes usando trabalhadores chineses – incluindo o uso relatado de prisioneiros chineses, no caso do Porto de Hambantota, agora alugado para a China por 99 anos porque o Sri Lanka não podia pagar suas dívidas. Os cingaleses beneficiaram pouco desses projetos.

No papel parecia que o país estava a desenvolver-se e o PIB estava subindo. Mas o crescimento foi do “dinheiro externo” em vez de bens e serviços gerados no Sri Lanka.

Os empréstimos chineses, de curto prazo e juros altos, também provocaram a aceleração da dívida do Sri Lanka. Como resultado, o país deve atualmente entre 5 e 10 mil milhões de USD à China, numa dívida global de 51 mil milhões de USD.

O que acontecerá?

A coisa mais importante que o Sri Lanka precisa daqui para frente é de estabilidade política. Sem isso, não terá a ajuda necessária da comunidade internacional.

E o Sri Lanka não vai sair da sua confusão económica sem a ajuda de organizações internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Asiático de Desenvolvimento e o Banco Mundial. Também precisa da ajuda de parceiros como Índia, Japão, China e EUA.

Wickremesinghe, o atual presidente, disse que o país sofrerá escassez de mercadorias até ao final de 2023.

O Sri Lanka precisa de uma reestruturação económica de longo prazo e em larga escala. E para que isso aconteça, o governo terá de reestruturar a sua dívida bilateral – o FMI não dará dinheiro ao Sri Lanka apenas para que possa pagar a sua dívida à China ou qualquer outra entidade.

Mas a China sabe que a reestruturação da dívida com o Sri Lanka implica que outros países que possuem grandes dívidas aos chineses – como o Paquistão e alguns países africanos – farão o mesmo. E Pequim não quer abrir esse precedente. Por outro lado, a China provavelmente terá de trabalhar com o Sri Lanka e outros doadores bilaterais, especialmente agora que os Rajapaksas estão fora do poder. A China precisa de cultivar a boa vontade para manter a influência na ilha e não vai querer ser vista como exacerbando as aflições do Sri Lanka.

O FMI provavelmente aplicará medidas dolorosas para reduzir os custos se quiser ajudar o Sri Lanka. Insistirá que o Sri Lanka deixe flutuar a sua moeda em vez de a manter ligada ao dólar, uma vez que agora os cingaleses no exterior estão a utilizar canais não oficiais – fora do sistema bancário – para enviar moeda estrangeira. Portanto, possivelmente terá de desvalorizar ainda mais a sua moeda. O FMI também exigirá que o governo reduza o número de funcionários estatais – que atualmente é de cerca de 1,5 milhão de pessoas.

Este será um processo muito doloroso, e levará algum tempo. E certamente agravará a turbulência do país nos tempos vindouros.”

* Os realces no texto são da autoria do Inconveniente.

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Written by

Sub-diretor do Inconveniente

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