
Há dois anos, aquele jovem reformado, o Alberto, passava grande parte do seu tempo preocupado com a sua saúde. Tinha consultas no centro de saúde de três em três meses, fazia análises regularmente, ia também a consultas de especialidades, oftalmologia, urologia, etc., no hospital ou no privado, com credenciais do centro de saúde. E, como se não bastasse, ainda ia por conta própria ao psiquiatra porque dormia mal, e ao dentista para tentar salvar os dentes que ainda tinha…
Apontava tudo num calendário pendurado na porta da cozinha para não falhar às consultas, principalmente as de especialidade, cujas faltas tinham que ser bem justificadas sob pena de ter que voltar a solicitá-las.
Era raro o mês em que não tinha uma consulta, uma análise de sangue ou de urina ou mesmo uma TAC, um ECG, uma endoscopia, etc. E pensar que ele tinha desejado tanto a reforma julgando que ia ter uma existência tranquila a passear e a gozar a vida…
Quase nem tinha tempo para dar uma escapadela e passar uns dias longe de casa, com o calendário da cozinha sempre cheio, a estragar-lhe a vida. Reformar-se aos 67 para andar nesta azáfama sanitária destruía-lhe toda a esperança que depositara de ainda poder ter paz na sua velhice.
Nisto, ocorre a pandemia. Todas as consultas, análises e exames foram cancelados sine die. Aliás, nem seria necessário, porque o medo de contrair a Covid sobrepôs-se à hipocondria geral; mesmo que não lhe tivessem cancelado as marcações, ele jamais pisaria um hospital ou centro de saúde frequentado por covidosos. Nem ele nem tantos outros que deixaram de ter consultas de rotina. Nem mesmo aqueles que tinham doenças a sério, porque já nem o cancro lhes metia tanto medo como a Covid.
Se houve algum efeito positivo nesta pandemia, foi o de ter acabado com uma série de doenças que só andavam a sobrecarregar desnecessariamente o SNS. Principalmente as dos viciados nos centros de saúde e hospitais, sempre cheios de gente, a rebentar pelas costuras. Mas não eram só os velhos com doenças crónicas: com uma simples constipação ou dor de barriga, lá iam eles, de todas as idades, encher as urgências para, depois de horas à espera a contagiar outros utentes, saírem com uma receita de paracetamol, laxante ou lenços de papel. Até havia quem fosse ao hospital só para sair de lá com um papel que lhe permitisse justificar a falta ao trabalho só porque nesse dia não lhe apeteceu ir…
Na urgência de pediatria era um ver se te avias – mães que levavam os filhos porque um esfolou os joelhos e outro perdeu o apetite… Conta-se de uma mãe que garantiu ao médico que o filho bebé não comia nada, mesmo nada; ao que o médico lhe perguntou se ele obrava e ela respondeu que sim, lá obrar, obrava bem! Se ele obra, minha senhora – disse o médico – alguma coisa deve comer! Este e outros casos parecidos, curaram-se com o milagre da pandemia! Desapareceram por completo dos hospitais e dos centros de saúde, que se dedicam agora quase em exclusivo à Covid ou a acidentes graves.
Mas o medo de contrair Covid é tanto que agora, quando alguém tem de ser levado ao hospital, inventa tudo para escapar. No outro dia, um operário caiu de um andaime e chamaram os bombeiros que, vendo-o estendido no chão, puseram-no numa maca e disseram-lhe que tinha de ser levado ao hospital onde iria fazer um teste à Covid à entrada. Mal ouviu falar em “Covid”, saltou da maca e desatou a correr. Milagre! Está curado!
No outro dia, encontrei o Alberto no supermercado. A uma certa distância e com máscara, cumprimentei-o:
– Como vai, Sr. Alberto?
– Muito bem!
– A sua saúde? Está melhor?
– Estou melhor que nunca.
– E das suas maleitas? Se bem me lembro, tinha várias queixas: articulações, angina de peito, prisão de ventre, diabetes, cataratas, problemas de sono, dores de dentes…
– Não sei o que me aconteceu, mas passou-me tudo!
– E a sua senhora? Salvo erro sofria de asma…
– Curadíssima! Nunca mais teve qualquer ataque!
– Então ainda bem porque, com esta pandemia, iam ter dificuldades no acesso aos cuidados médicos…
– Pois é, Sr. Doutor! Há males que vêm por bem!
Lá nos despedimos, desejando a continuação deste… “milagre” da pandemia.