
Para lá do resultado da guerra e das alterações nos equilíbrios geopolíticos, não é preciso ser émulo do Professor Zandinga para prever que as acções da Rússia na Ucrânia poderão ter desastrosos efeitos, a longo prazo, na influência cultural, linguística, militar e política da Rússia no mundo e em particular em muitas regiões ex-soviéticas ou de algum modo ligadas à civilização russa.
Vladimir Putin justificou a sua agressão contra a Ucrânia, com um conjunto de pretextos desconexos e até disparatados para quem observa o conflito sem os filtros da propaganda interna (como por exemplo a “desnazificação”, ou a “ameaça da NATO”) mas o que realmente o parece mover é a espuma dos sonhos do nacionalismo imperialista russo, a aspiração utópica de federar os falantes russos, amalgamando os conceitos de russofonia e russofilia, e reconstruindo o mítico “Russkiy Mir” (Mundo Russo), tudo isto bem articulado por Alexandr Dugin, ele mesmo mero receptáculo das ideias do filósofo fascista Ivan Ilyin, muito admirado por Putin que, em 2009, tratou pessoalmente da trasladação dos seus restos mortais para Moscovo.
Em 2014, a Federação Russa anexou a Crimeia e desvendou o plano de se apoderar da “Novorossia” – Nova Rússia – como chamou às regiões leste e sul da Ucrânia.
À época não se achava em condições de ser mais audacioso e contentou-se em abocanhar algumas faixas de território ao redor de Donetsk e Luhansk.
Serviu de teste e o facto de as reacções ocidentais terem sido tíbias e quase protocolares, por não acreditarem que o plano era mesmo a sério, reforçou a confiança de Putin quanto à consecução do ambicioso objectivo.
Oito anos depois, crente na fraqueza da Administração americana, comprovada pelo precipitado abandono do Afeganistão e pela fratricida divisão interna na sociedade americana, subestimando a liderança ucraniana e convicto de que tinha a Europa no bolso, pela dependência energética e pela creditada tibieza e até falta de visão estratégica dos seus líderes, lançou a ousada invasão que andava a planear há alguns anos.
A ideia era obter a claudicação rápida do governo ucraniano, a instalação de um poder fantoche em Kiev e a rápida anexação dos territórios que lhe interessavam.
No papel parecia plausível.
Mas os olhos tendem a comer mais do que a barriga, as coisas não correram como esperava e o desastroso erro de cálculo, em vez de promover e restaurar o Russkiy Mir, descambou no pior cenário possível, aquele em que a Rússia se vê atascada numa guerra prolongada que poderá acabar com a influência cultural, militar, linguística e política remanescente da Rússia em muitas regiões vizinhas onde perdura até hoje.
Hitler, a quem Putin verdadeiramente imita, fez o mesmo número funambulesco na Alemanha.
Tendo como objectivo a afirmação do domínio alemão na Europa, atacou com tudo o que tinha, também a pretexto de proteger minorias germânicas, e acabou por destruir a influência alemã em quase todos os lugares onde ela existia, nomeadamente na chamada Mitteleuropa, vasta zona da Europa Central cujos intelectuais e elites usavam até aí o alemão como língua franca da cultura e da modernidade. Kafka, Hannah Harendt, Heidegger, Husserl, Max Webber, Thomas Mann, Habermas, Hegel, Marx, Einstein, Joseph Roth, Freud, Max Planck, etc., escreviam e expressavam-se em alemão, que era à época a língua da ciência, da filosofia e até da arte.
Riga, Tallinn e outras cidades bálticas eram membros da Liga Hanseática. A língua estoniana tem aliás imensas palavras alemãs e o alemão continuou a ser língua oficial nestas cidades, mesmo depois da integração no Império Russo, no séc. XVIII.
O próprio iídiche, língua falada durante muito tempo por milhões de judeus na Europa, é uma língua germânica próxima do alemão.
A partir da derrota na Segunda Guerra Mundial, muitos intelectuais da Europa Central, incluindo incontáveis judeus, recusaram-se a falar alemão que rapidamente foi ultrapassado pelo inglês como língua franca, no mundo pós Hitler.
As minorias alemãs foram expulsas da Polónia, Checoslováquia, Hungria, Roménia, Jugoslávia, etc. e ainda hoje, apesar de a Alemanha ser a maior potência económica da Europa, tem uma influência cultural muito inferior ao seu músculo económico.
Os russos, vitoriosos, ocuparam muitos destes territórios e tentaram fazer a engenharia étnica que estão agora mesmo a replicar nos territórios ucranianos ocupados, transferindo populações russas para eles, levando crianças ucranianas para o interior da Rússia, etc.
Durante os tempos soviéticos, o governo de Moscovo desenvolveu a indústria e importou centenas de milhares de trabalhadores russos que se fixaram nas zonas ocupadas.
À moda do Império Romano, estimulou a aposentação dos veteranos militares um pouco por todo o lado, nas novas repúblicas soviéticas e outras zonas ocupadas. Ainda hoje, nos países bálticos, na Ucrânia, etc., as pessoas mais velhas, originais das regiões, sabem falar russo, a língua usada e exigida nas escolas soviéticas, havendo uma certa nostalgia, como é natural quando revivemos as memórias da infância.
Os mais jovens, esses falam inglês, muitos já andaram pelo mundo e não querem certamente fazer parte do Império Russo que Putin quer reconstituir.
Todavia em algumas regiões, onde o russo é falado por quase toda a gente, há muitos russos que se orgulham da sua identidade, e olham para este conflito na Ucrânia segundo os filtros da propaganda do Kremlin.
O que não é surpreendente, dado que até no Ocidente isso acontece com comunistas, teóricos da conspiração e anti-americanos de várias etiologias.
Cientes do perigo, quando acederam à independência, Estónia e Letónia procuraram deportar a minoria russa, mas desistiram, tendo em conta as suas aspirações de aderir à EU e este tipo de limpezas étnicas ser totalmente contra o espírito e a letra das leis europeias.
A invasão da Ucrânia em Fevereiro de 2022, acentuou a desconfiança dos países bálticos relativamente aos cidadãos de origem russa, encarados como uma possível 5ª coluna, uma ameaça séria e eventual pretexto para interferências russas, à semelhança do que aconteceu na Ucrânia onde, como se sabe, a Rússia usou as minorias russófilas para incentivar separatismos e justificar, em última análise, a intervenção militar.
Face a isto, não é de descartar, e é até bastante provável, que os países onde as populações russas têm uma certa expressão, enveredem a prazo por medidas que visem, de uma forma ou outra, empurrar essas populações para a Rússia.
De resto, já se assiste hoje nestes países a iniciativas no sentido de banir a entrada e trânsito de cidadãos russos, o que é natural, dados os antecedentes.
Seja como for, a médio e longo prazo, a Rússia, ou ganha as guerras e restaura pela força o seu Império e o seu prestígio, o que, apesar de improvável, não seria nada bom para o espaço civilizacional a que pertencemos, ou perde e ver-se-á cada vez mais confinada ao seu espaço de soberania, sem qualquer influência cultural, sem dimensão demográfica para escapar ao vórtice gravitacional da perda de poder, rodeada por espaços tecnologicamente mais desenvolvidos, mais populosos e mais poderosos.
Uma vez perdida, por eventual transição energética, a caixa registadora que garante rublos, a Rússia, ou muda por dentro, ou tenderá ficar isolada no seu espaço, um gigantesco estado pária, émulo em escala gigante da Coreia do Norte, protegido por detrás das suas armas nucleares e fazendo de quando em quando notar a sua existência, pela mera ejaculação de mísseis.
E neste cenário, neste momento o mais provável, Putin será recordado na História no mesmo panteão de Adolfo Hitler, execrado pela maioria das pessoas no mundo e admirado por franjas de lunáticos.
José do Carmo
*O autor escreve segundo a anterior norma ortográfica.
Carlos2 / Agosto 28, 2022
Amnesty further backtracks on ‘inconvenient’ Ukraine human rights report
https://odysee.com/@RT:fd/amnesty-backtracks:d
.
https://www.amnesty.org/en/latest/news/2022/08/ukraine-ukrainian-fighting-tactics-endanger-civilians/
.
Isto não é importante notícia, até porque estão lá para implementar a democracia
US loots 83% of Syria’s crude production – oil ministry
https://odysee.com/@RT:fd/Syria_US_Caleb_Maupin_25:4
/