O drama da reciclagem em Portugal – o que falhou na política dos 3 Rs?

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Hoje venho falar de lixo. Porquê? Porque cada português produz mais de 513 kg de resíduos sólidos por ano. Isto é pouco menos do que um peso de uma vaca, mas imaginem que todos os portugueses produzem o equivalente a uma vaca para esse mesmo ano, ou seja, produzimos todos juntos quase o peso equivalente a 11 milhões de vacas. A boa notícia é que podemos reduzir e ou ter um papel fundamental para que este lixo todo não acabe ou na atmosfera, na forma de CO2, ou em aterros.


Os 3 Rs e o seu impacto no ambiente

Muito há para se escrever sobre a reciclagem. A reciclagem é a transformação de um produto que já não tem interesse ou uso num produto novo. Mas é preciso que este resíduo seja transformado, senão entra antes na categoria da reutilização. A reutilização é um processo mais eficiente, mas apresenta muitas vezes limitações, algumas derivadas da natureza de certos produtos, não reutilizáveis, e outras derivadas da quantidade de resíduos que uma família sozinha produz. E, esta situação, leva-nos a outro conceito, a redução, que é a de todas a que sai mais barata ao consumidor. Deve-se continuar a fazer legislação séria que nos afaste do abuso do embalamento de produtos, mas parte também do consumidor optar por alternativas mais amigas do ambiente, optando, por exemplo, por comerciantes que vendam a granel. Estes são então os nossos bem conhecidos 3 Rs.

Foi em 1992, no Rio de Janeiro, enquanto decorria a Conferência da Terra, que este tipo de ações foi proposto, sendo formalizado em 1993 pelo programa europeu para o Ambiente e Desenvolvimento. Dos 3Rs, aquele que implica um menor esforço ou mudança para o consumidor é a reciclagem. Todos os jovens a partir da década de 90 foram educados à luz da política dos 3 Rs, com campanhas e ações de sensibilização realizadas um pouco por todo o país e com anúncios frequentes na televisão e assistiram-se a inúmeras reformas nesse sentido. Todos devem ainda recordar-se do Gervásio, aparecido em 2000, o simpático chimpanzé que nos mostrou que até ele era capaz de reconhecer quais as embalagens recicláveis e a sua separação pelos diferentes ecopontos.

Quase 30 anos depois, cerca de 35%* da população portuguesa atual pode dizer que durante toda a sua vida conheceu a reciclagem, mesmo aqueles que não a fazem diariamente. Merece a pena refletir sobre de onde vem a resistência à reciclagem e como é que reciclamos em Portugal.

Os portugueses têm muitas dúvidas sobre o processo de reciclagem em si. Aos portugueses é-lhes pedido que façam a separação das embalagens por três (clássicos) ecopontos ou caixotes, os plásticos e metais, o papel e cartão, e o vidro. O pagamento da recolha dos reciclados está a cargo das empresas embaladoras. No início, talvez por ter sido um esforço enorme construir as infraestruturas de raiz, havia poucos ecopontos e estes estavam mais concentrados em áreas urbanas, o que não era conveniente, com poucas recolhas. Hoje em dia as recolhas são regulares e isto já não é desculpa – diz-se que existem mais ecopontos do que caixas multibanco – ou seja, quase 80.000 ecopontos espalhados pelo país. Garantidamente toda a gente deve ter um ecoponto a menos de um ou dois quilómetros de casa (na generalidade dos casos). Por outro lado, não ter um ecoponto à porta de casa parece ser uma desculpa um pouco fraudulenta, já que as pessoas saem com regularidade para se deslocarem a inúmeros sítios, havendo assim a oportunidade de levar consigo a reciclagem.

Existe, além da questão logística, algum ceticismo a que se aliam teorias da conspiração – as entidades farão ou não a reciclagem? Quem é que ganha com este negócio? Começando pela última questão: nós todos. Existem talvez dois motivos para este ceticismo, um que passa pela recolha e o outro pelo processamento. Ainda que estejamos em 2021, as pessoas continuam sem conhecer que muitos dos veículos de recolha dos reciclados fazem uma recolha conjunta de plástico e papel. É ainda recorrente aparecerem queixas de residentes, reportando recolhas num único veículo, fazendo-os suspeitar de que tudo é misturado. Existem na realidade veículos próprios de recolha dos recicláveis que transportam os diferentes resíduos em compartimentos diferentes. Aliás, do ponto de vista financeiro, não haveria ganho nenhum em misturar estes resíduos. A acrescentar que por vezes são sinalizados ecopontos por estarem contaminados com matéria orgânica e, nesse caso, todo o conteúdo do ecoponto fica inviabilizado, não restando outra solução do que a de juntar o seu conteúdo ao do indiferenciado. Resta-nos refletir, como cidadãos, o que estamos a fazer mal no que diz respeito a esta seleção de lixo e zelo pelos ecopontos.

Relativamente ao processamento, não se pode fazer esta análise sem perceber quem é que está por detrás do tratamento e valorização dos resíduos sólidos urbanos (RSU). Em Portugal, a empresa ou entidade que trata dos RSU de mais de 60% dos portugueses é a EGF (Environment Global Facilities). Aliás, a privatização por um valor para amigos da EGF, uma estrutura nacional bem conseguida e multifacetada, é algo incompreensível para a maioria dos portugueses. A EGF (hoje maioritariamente do grupo Mota-Engil) tem participações em 11 empresas que fazem a gestão intermunicipal dos resíduos urbanos.

No caso de muitos municípios ao redor de Lisboa e em Lisboa, este é feito pela Valorsul. A Valorsul faz a triagem de materiais recicláveis, como também uma valorização orgânica, energética e, obviamente, a deposição em aterro. Existe uma certa desconfiança por parte do cidadão dos fluxos do lixo ao nível destas centrais, nomeadamente da rentabilidade da incineração ou depósito em aterro versus triagem. A verdade é que existe um mercado importante em torno da gestão destes resíduos, do seu processamento e valorização, como o plástico ou vidro reciclado. Este tem, obviamente, um custo mais baixo do que a matéria-prima equivalente de primeiro ciclo para o produtor. A atestar a rentabilidade do negócio está o facto de se poder fazer dinheiro, entregando diretamente plásticos, metais ou cartão a este tipo de empresas. Tanto que, a atualização da tarifa incidente sobre os RSU indiferenciados de 2021 vem incentivar o sector a apostar na recolha seletiva e na valorização destes produtos. Este sector tem também um peso cada vez maior na economia portuguesa, dando lugar a 2400 empregos e gerando 71 milhões de euros de PIB por ano.

Mas então, qual é o cenário da reciclagem em Portugal e o que nos reserva o futuro?

Em 2020, Portugal terá reciclado aproximadamente 40%** do que é reciclável quando a meta era de 50%. A Sociedade Ponto Verde, entidade gestora de resíduos de embalagens, conta-nos que em 2020 conseguiram encaminhar para reciclagem 409 mil toneladas de embalagens, o equivalente a 2.200 Boeings 747 e evitando assim a emissão de mais de 158 mil toneladas de CO2 para a atmosfera. A este nível, um dos resíduos com maior ganho é a reciclagem de alumínio, já que a reciclagem de 10 kg de alumínio evita o consumo de energia equivalente à emissão de 60 kg de CO2 em relação à sua produção a partir do minério.

Mas os portugueses estão longe do pódio no que toca a reciclagem. Por exemplo, só a Valorsul tem feito anualmente a recolha e processamento de 60.000 toneladas de resíduos de embalagem de recolha seletiva por ano. Atendendo à população que serve, pouco mais de 1 milhão e meio de portugueses, isto corresponde a 38 kg/ habitante/ ano. No entanto, isto corresponde apenas a pouco mais de 7% dos RSU produzidos nesses municípios, ou seja, da nossa vaca. Há lugar para crescer.

Urge também compreender que do total do que é reciclado, uma parte vem do que é recolhido como resíduo indiferenciado, que é posteriormente selecionado e tratado a partir das plataformas de tratamento mecânico (TM) ou mecânico e biológico (TMB). Desta forma, os valores referentes à meta da preparação para a reutilização e reciclagem tem em conta o que é reciclado a partir dessas estações e não podemos olhar para ela como equivalente à recolha seletiva. Ao consultarmos o relatório da APA (Agência Portuguesas do Ambiente) referente ao ano de 2019 é possível perceber que a recolha seletiva corresponde a 11% do total de RSU. Infelizmente, ainda que 33% dos RSU sejam encaminhados para as TM e TMB para aumentar a taxa total de material reciclado, esta parcela é irrisória olhando para os 13% de reciclagem total dos RSU. Isto faz salientar a ineficácia ou incapacidade de re-seleção a partir deste tipo de tratamento, e demonstra a importância da seleção dos materiais recicláveis nos ecopontos. De relembrar que o destino final da maioria dos RSU continua a ser o aterro (mais de 57%). De quantos mais aterros iremos assim necessitar no futuro? Os aterros sanitários, por muito bem desenhados que sejam, não são nada amigos do ambiente.


Isto porquê?

Por exemplo, falando do ponto de vista climático, reciclar evita emissões de CO2 para atmosfera. Ainda que existam outras fontes emissoras muito mais importantes, isto não implica que não possamos fazer parte das medidas de redução de emissões. Segundo o Eurobarómetro, mais de 94% de todos os cidadãos da UE estão preocupados com o ambiente e com as alterações climáticas. Mas também parece ser claro que em Portugal nem todos tomam uma atitude pró-ativa na resolução destas questões, à sua escala e dentro do seu alcance. Quer evitar que a temperatura do Planeta aumente? Comece por melhorar as suas práticas de reciclagem, reutilização e redução de resíduos e reduza também a quantidade de CO2 que emite indiretamente. Por outro lado, a reciclagem entra diretamente na economia circular, beneficiando toda a cadeia de valor, desde o produtor até ao consumidor, diminuindo a pressão sobre a exploração de novas matérias-primas. Isto implica também que menos lixo vá parar aos oceanos ou às florestas e também aos aterros, com os benefícios ambientais profundos daí resultantes.

Por outro lado, Portugal tem que se esforçar mais para cumprir com as metas PERSU (Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos), uma delas a redução em 10% (base no ano de 2012) de RSU, que temos falhado contundentemente, diminuir a deposição de resíduos biodegradáveis em aterro e, no que toca a reciclagem, por exemplo, alcançar 65% de taxa de reciclagem de plásticos até 2030. Para 2020, o ministério do ambiente indicou que esta foi avaliada em 56%. Este valor é discutível, já que a Eurostat indica que o valor ronda os 35% e a Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável, com base nos relatórios da APA, indica-nos que não passou dos 12 ou 15%. No global, em 2019 Portugal fica abaixo de todas as metas definidas para estas matérias, apesar de ter uma população já altamente capacitada para as fazer cumprir.

Estes valores colocam-nos assim, e uma vez mais, na cauda da Europa. Mas, e independentemente de metas a cumprir ou de números que os burocratas precisam para as suas campanhas eleitorais, estes números refletem a falta de honestidade e empenho de muitos portugueses em fazer parte de um futuro melhor para todos. Não é por existirem outras fontes de poluição mais importantes que não devemos cumprir com o nosso dever cívico. Continuamos a procurar respostas nos outros e muito pouco em nós próprios.


Inês Pereira
Investigadora pós-doutorada em França

* estimado com base nos dados da PORDATA da população residente em 2019 com entre 5 e 40 anos.

** este valor ainda não está devidamente apurado.

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