
Como entender o caso Marcelino da Mata, herói português que se distinguiu na luta contra o movimento armado que queria a independência da Guiné e Cabo Verde, o PAIGC?
Marcelino da Mata nasceu na Guiné-Bissau e era da etnia papel e de cor negra. Mas nasceu num território que na altura era também Portugal. Haveria quem fosse contra a presença colonial portuguesa na Guiné, mas entre os autóctones também havia quem fosse a favor dessa presença. Faz parte da natureza humana não pensarmos todos de igual forma.
Marcelino, e muitos mais guineenses, escolheram servir o que consideravam ser a sua Pátria, Portugal. Lutaram ao lado de soldados portugueses contra os que eram considerados terroristas mas seus próprios conterrâneos. E perderam! O movimento independentista derrotou militarmente os portugueses que capitularam e entregaram o poder ao PAIGC em novembro de 1974, depois do golpe de Estado de 25 de abril de 1974 em Portugal e do reconhecimento da independência da Guiné em setembro de 1974.
O poder na Guiné foi entregue ao PAIGC e as tropas portuguesas regressaram a Portugal, mas abandonando soldados portugueses guineenses entregues ao seu destino. Obviamente que muitos deles seriam fuzilados pelo PAIGC por traição à nova pátria.
Marcelino escapou de ser fuzilado pelo PAIGC porque estava em Lisboa no hospital militar a recuperar de feridas de guerra. Porém, não teve sorte porque foi vítima de racismo. Em vez de ser tratado como um qualquer soldado português (ele nunca teve outra nacionalidade!), foi torturado, acusado de traição e de pertencer ao ELP (Exército para a Libertação de Portugal), pelos revolucionários portugueses que lhe causaram danos físicos irreversíveis no RALIS, onde se apresentou de livre vontade logo que soube que estava sob suspeita. Felizmente, após a detenção em Caxias, conseguiu refugiar-se em Espanha e França e regressou a Portugal, a sua pátria, depois da instauração da democracia no 25 de novembro de 1975.
No RALIS, Marcelino da Mata foi alvo de racismo. Não cabia na cabeça dos revolucionários que um natural da Guiné pudesse ser mais português do que eles. Só podia, pois, ser um traidor. E foi por isso, por ser preto da Guiné, que foi torturado o soldado mais condecorado de Portugal.
Creio que poucos saberão que Amílcar Cabral, fundador do PAIGC, pensava desta forma:
“Como sabe, nós temos uma longa caminhada juntamente com o povo português. Não foi decidido por nós, não foi decidido pelo povo português, foi decidido pelas circunstâncias históricas do tempo da Europa das Descobertas e pela classe de “antanho”, como se diz em português antigo; mas é verdade, é isso! Há essa realidade concreta! Eu estou aqui falando português, como qualquer outro português, e infelizmente melhor do que centenas de milhares de portugueses que o Estado português tem deixado na ignorância e na miséria. Nós marchamos juntos e, além disso, no nosso povo, seja em Cabo Verde seja na Guiné, existe toda uma ligação de sangue, não só de história mas também de sangue, e fundamentalmente de cultura, como o povo de Portugal. […] Essa nossa cultura também está influenciada pela cultura portuguesa e nós estamos prontos a aceitar todo o aspeto positivo da cultura dos outros.
Nós, em princípio, o nosso problema não é o de nos desligarmos do povo português. Se porventura em Portugal houvesse um regime que estivesse disposto a construir não só o futuro e o bem-estar do povo de Portugal mas também o nosso, mas em pé de absoluta igualdade, quer dizer que o Presidente da República pudesse ser de Cabo Verde, da Guiné, como de Portugal, etc., que todas as funções estatais, administrativas, etc. fossem igualmente possíveis para toda a gente, nós não veríamos nenhuma necessidade de estar a fazer a luta pela independência, porque todos já seriam independentes, num quadro humano muito mais largo e talvez muito mais eficaz do ponto de vista da História. Mas infelizmente, como sabem, a coisa não é essa; o colonialismo português explorou o nosso povo da maneira mais bárbara e mais criminosa e quando reclamamos um direito de ser gente, nós mesmos, de sermos homens, parte da humanidade.
Mas nós nunca confundimos o colonialismo português com o povo de Portugal, e temos feito tudo, na medida das nossas possibilidades, para preservar, apesar dos crimes cometidos pelos colonialistas portugueses, as possibilidades de uma cooperação eficaz com o povo de Portugal, numa base de independência, de igualdade de direitos e de reciprocidade de vantagens seja para o progresso da nossa terra, seja para o progresso do povo português. O povo português está submetido há cerca de meio século a um regime que, pelas suas características, não pode ser deixado de ser chamado fascista. A nossa luta é contra o colonialismo português. Nós somos povos africanos, ou um povo africano, lutando contra o colonialismo português, contra a dominação colonial portuguesa, mas não deixamos de ver a ligação que existe ente a luta antifascista e a luta anticolonialista.
Nós estamos absolutamente convencidos de que, se em Portugal se instalasse amanhã um governo que não fosse fascista, mas fosse democrático, progressista, reconhecedor dos direitos dos povos à autodeterminação e à independência, a nossa luta não teria razão de ser. Aí está a ligação íntima que pode existir entre a nossa luta e a luta antifascista em Portugal; mas também, vice-versa, estamos absolutamente convencidos de que, na medida em que os povos das colónias portuguesas avancem com a sua luta e se libertem totalmente de dominação colonial portuguesa, estarão contribuindo de uma maneira muito eficaz para a liquidação do regime fascista em Portugal. […] Nós queremos entretanto exprimir claramente o seguinte: nós não confundimos a nossa luta, na nossa terra, com a luta do povo português; estão ligadas, mas nós, no interesse do nosso povo, combatemos contra o colonialismo português. Liquidar o fascismo em Portugal, se ele não se liquidar pela liquidação do colonialismo, isso é função dos próprios portugueses patriotas, que cada dia estão mais conscientes da necessidade de desenvolver a sua luta e de servir o melhor possível o seu povo.”
É muito estranho que a mesma área ideológica socialista, que se afirma antirracista, não reconheça o seu próprio racismo quando deu tratamento diferente a um soldado português só porque era preto e alegado traidor de uma pátria que nem sequer existia quando ele a traiu. Pelo contrário, ele honrou a sua Pátria!
A terminar este testemunho, deixo o meu voto de profundo pesar pela morte do soldado português tenente-coronel Marcelino da Mata, grande herói da malograda e inglória Guerra do Ultramar que infelizmente se perdeu porque, parafraseando Amílcar Cabral, “o direito de ser gente, de ser nós mesmos, de sermos homens, parte da humanidade” não foi reconhecido. E ainda não é!
Henrique Sousa