
Quem chega ao portão do Zmar, ou vê o empreendimento à distância, poderá ter um calafrio. A vedação, a terra batida, as pequenas habitações de madeira, lembram campos que, felizmente, a História não esquece, mas que, infelizmente existiram. Todavia, assim que se entra no vasto edifício da recepção, a impressionante beleza das madeiras claras que tudo revestem, as janelas rasgadas, a simpatia e competência do pessoal, revelam que algo de inovador, merecedor de apreço, nos espera.
Tive, ao longo de duas semanas, a oportunidade de confirmar essa primeira impressão. Num pequeno bungalow, que não teria mais de cinquenta metros quadrados, encontrei um conforto inexcedível e uma tranquilidade que quase tinha esquecido. Os perfumes da charneca alentejana, o canto das aves, os rebanhos que passavam lentamente, completavam um quadro bucólico, reminiscência de tempos bem distantes. Ao longe, avistava-se a serra de Monchique; e, bem perto, as magníficas praias da costa vicentina ofereciam a cada dia experiências diversas. Dentro do empreendimento, as enormes piscinas, os vales onde velhos sobreiros se interligavam por passadeiras arbóreas, a animação diurna e noturna, a excelente restauração, convidavam a ficar.
Todo este descritivismo, um saudosismo de quase seis anos, apenas se deve à vontade que tive de ficar, de ali adquirir um bungalow como casa de férias. Apesar de não ter concretizado esse desejo, a experiência leva-me a encarar com horror a hipótese de ver esse meu Éden fugaz transformado em covidário. Leva-me também à total solidariedade com quem vê ameaçados os seus direitos de proprietário, a quem teme agora a devassa da intimidade que se constrói numa casa.
De facto, neste desafortunado país, só falta que, depois da reforma agrária, o Alentejo seja presa da “reforma covidária”. As piores ideias, as mais execráveis intenções, escondem-se habilmente sob a pele de cordeiro da bondade e da compaixão. A prática marxista vai-se tornando um hábito, manipulando a opinião pública menos esclarecida. E em breve se conseguirá a condenação dos proprietários de grande parte das casas, dos empresários em pleno processo de recuperação do eco resort, pelo crime de não receberem de braços abertos “les misérables” do nosso tempo e lugar.
Chega a ser tragicómico que tanta generosidade no abuso dos bens alheios venha de quem chega ao ponto de expulsar os guardas que os protegem, para que não lhe incomodem o cão. Mas, infelizmente, é este o país de opereta que vamos tendo.
Agora, obviamente, há pressa em disfarçar a inépcia governamental e municipal quanto à protecção de migrantes quase escravizados. A Covid veio pôr a nu a miséria encoberta, mas certamente conhecida da Câmara do Governo.
Nos lares de idosos, como nas estufas alentejanas, pouco importa que se sofra ou morra, desde que tal possa ser ocultado. Deixou de poder porque a emergência da pandemia expôs o que se abafava. Nos hospitais e centros de saúde vem também à luz do dia a mortandade evitável dos doentes graves “não-Covid”, a quem foi sonegada assistência.
Nas escolas, os professores são compelidos a desdobrar-se em esforços para colaborarem forçados em outra manipulação criminosa: a de que o ensino online equivale ao presencial. Afinal, um corolário de outro fingimento que é o da existência de um ministro da educação.
Nas ruas, a mendicidade envergonhada e as filas da fome, embora não abram telejornais, aumentam ao ritmo assustador dos crescentes desemprego e subemprego.
É terrível constatar quão submisso o povo em geral se tornou após quinze períodos de estado de emergência. Como se se tivesse habituado a temer e a obedecer, mesmo quando em causa estão os seus direitos constitucionais.
Contudo, quero conservar a esperança na multiplicação de focos de resistência à arbitrariedade do Governo que pretende disfarçar a sua incúria e incompetência. “Je suis Zmar” deveria ser a palavra de ordem deste momento.
Isabel Pecegueiro
*A autora usa a norma ortográfica anterior.