Incêndios e incendiários

Começamos por lembrar que um incêndio só deflagra quando se juntam os três vértices do chamado Triângulo do Fogo: Combustível (aquilo que é suscetível de arder), Comburente (oxigénio do ar) e por fim a Ignição, sendo ela o vértice responsável pela eclosão da maioria dos incêndios florestais.

Assim, para prevenir incêndios indesejáveis, é preciso não permitir a junção dos 3 vértices. O combustível, que no caso dos incêndios florestais são as árvores e matos, encontra-se quase sempre disponível e tem muitas vezes valor económico e ambiental. Podemos, contudo, ter sobre ele ação preventiva do fogo, respeitando distâncias (entre árvores e destas às construções) e cuidando da limpeza das florestas e matos. O comburente existe no ar e dele também precisamos para respirar, sendo assim um vértice que não se pode eliminar. Resta-nos por isso atuar sobre a ignição que é o vértice que, na maioria das vezes, poderia não existir sem a presença humana, agravada pela acumulação de combustível que resulta, paradoxalmente, da ausência humana nos campos.

Claro que há incêndios com ignição natural, como por exemplo os que resultam da queda de raios ou outras ocorrências, mas são uma minoria. Em Portugal, por exemplo, estima-se que os incêndios com ignição natural sejam residuais, cerca de 1% /1/.

É recorrente ouvir ou ler nos meios de comunicação dominantes que a maior frequência atual de incêndios florestais se fica a dever às alterações climáticas. Mas como podem as alterações climáticas provocar incêndios? Um aumento da temperatura ambiente, mesmo que seja alegadamente de alguns graus, não provoca nenhuma ignição, são precisas muitas centenas de graus para ocorrer uma ignição, ou uma faísca elétrica potente. Até apetece parodiar com esta ingenuidade: “Encontra-se uma árvore sossegadinha a crescer, nisto cai-lhe uma alteração climática em cima e desata a arder”.

Mas falemos de coisas sérias! A maioria dos grandes fogos ocorre quando a situação meteorológica é de temperaturas acima de 30 ºC, humidade relativa inferior a 30% e vento com velocidade superior a 30 km/h – a chamada regra dos 30. Mas esta situação meteorológica não é, em si, a responsável pelos incêndios, apenas favorece a sua veloz propagação, dificultando as ações de combate.

Mas há um componente da regra dos 30 que pode, por si só, provocar indiretamente incêndios – o vento forte! É o que acontece, por exemplo, quando o vento arranca um ramo de uma árvore e este vai cair sobre uma linha elétrica de média ou alta tensão, provocando uma faísca que incendeia esse ramo e, posteriormente, o fogo propaga-se às árvores vizinhas. Algumas ignições podem assim ser atribuídas indiretamente ao vento forte que provocou as faíscas elétricas mas estas só ocorrem por causa das linhas elétricas construídas pelo homem.

A este propósito, recordemos que o Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra, sob a coordenação de Xavier Viegas, chegou à conclusão que os incêndios em Pedrógão de 2017, que custou a vida a muitas dezenas de pessoas, tiveram origem em linhas elétricas da EDP, tendo esta mandado destruir provas (cortar árvores) quando soube do resultado do relatório. Que se saiba, ninguém se demitiu na EDP.

Nos primeiros momentos dos incêndios recentes de Maui no Havai, quando ventos fortes derrubaram postes de energia e as linhas elétricas sem isolamento caíram sobre a vegetação seca, as chamas irromperam em filas bem delineadas. A companhia elétrica Hawaiian Electric Co foi acusada de não ter desligado as linhas em situação de vento forte, que é uma prática comum, e o diretor da empresa demitiu-se.

A grande maioria dos incêndios, cerca de 99%, são, portanto, de causas não naturais /1/. Isto é, resultam direta ou indiretamente da intervenção humana na natureza. E esta intervenção vem acontecendo desde tempos pré-históricos, já no Paleolítico o homem fazia queimadas para libertar terras para a caça e habitação /1/. E as queimadas são ainda hoje uma prática comum na lavoura, podendo dar origem a incêndios acidentais graves.

Na década de 2010 a 2019, a negligência representou 48% das causas de incêndios, a intencionalidade 32,2%, e os reacendimentos 18,6%, sendo as restantes atribuídas a causas indeterminadas num universo de 79,9% de ocorrências investigadas.

E todas estas causas humanas conhecidas contribuem para milhares de ocorrências, a perda de milhares de hectares de floresta e de muitas vidas humanas – bombeiros e populares. Mas, apesar de as causas serem conhecidas, entre elas também as intencionais onde se insere o incendiarismo, pouco se faz no sentido de atuar sobre elas – com educação e prevenção no que respeita à negligência e repressão para a intencionalidade – preferindo-se culpar as alterações climáticas e investir rios de dinheiro no combate às chamas.

Henrique Sousa

Editor para Energia e Ambiente do Inconveniente

/1/ Os Incêndios Florestais em Portugal, ensaio de António Bento-Gonçalves, publicado em 2021 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos

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Sub-diretor do Inconveniente

Latest comments

  • “… a negligência representou 48% das causas de incêndios, a intencionalidade 32,2%, e os reacendimentos 18,6%, …”

    Desconfio muito da realidade destes valores.

    No que respeita à negligência, parece-me um valor demasiado elevado. Uma investigação séria levada a cabo sobra os factos e os fundamentos técnicos que possam ter estado na origem dos incêndios por negligência creio que nos levaria a uma conclusão ‘ligeiramente’ diferente.

    Acerca da intencionalidade, é lamentável que, com os meios hoje existentes, não se implemente uma vigilância eficaz e uma perseguição dos incendiários que por aí se movimentam com algum àvontade. Só os mais ‘tótós’ se deixam apanhar. Perfilho a ideia de que o crime de fogo posto intencional deva ser equiparado a crime de terrorismo.

    Quanto aos reacendimentos, boa parte deles indiciam, escandalosamente, um empenho bastante discutível na gestão do combate aos incêndios.

    No que diz respeito ao combate dos incêndios propriamente dito, muito se tem falado sobre o assunto e parece que apenas os bombeiros e a pérola de instituição que é a ANPC não querem ouvir.

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