
A “cancel culture” prossegue o seu caminho destruidor dos fundamentos da cultura ocidental. Julgámo-nos, na Europa, a salvo da barbárie, após a derrota da besta nazi, mas nada mais enganador. A “banalidade do mal”, que tantas críticas indignadas custou a Hannah Arendt, está bem e recomenda-se.
Fernando Pessoa declarava, a concluir a sua nota biográfica, espécie de testamento ideológico, que tinha como objectivo essencial, incontornável, “combater sempre e em toda a parte, os assassinos do mártir Jacques de Molay: a ignorância, o fanatismo, e a tirania”. Como não apoiar os seus propósitos? Quando atribui ao seu heterónimo Álvaro de Campos uma primeira fase literária, decadentista, nela faz sentir a fragmentação que se opera em quem distribui a sua vida por um século cessante e outro que se revela. Quem viveu no século XX, compreendê-lo-á certamente. De facto, é difícil enfrentar sem tristeza e nostalgia o afundar, qual Titanic (e não é por acaso que lembro o navio e o filme) de uma cultura a que, apesar de todos os seus vícios, nos tínhamos afeiçoado. Porque era a nossa.
De igual modo, se saudamos, com o entusiasmo dos Futuristas, as inovações da técnica, a crescente liberdade individual, não deixa de nos nascer um sentimento de estranheza perante a transformação de tudo o que vivemos e conhecemos. Contudo, os millenials, a quem só a cultura livresca (geralmente pobre) revela o passado, tendem a julgá-lo de modo impiedoso e fanático.
E, se concordarmos com Pessoa, ignorância e fanatismo, se aliados à tirania, produzirão os frutos mais letais. E se já tiver chegado a Tirania? Se ela se for insidiosamente instalando, de novo, no nosso mundo ocidental? Então há que temer ou combater.
O politicamente correcto vai sendo uma das mais perigosas armas na tentativa, sempre funesta, da “construção do Homem Novo”. E contudo, os seus sinais vêm já de tão longe que tempos houve em que ainda conseguíamos rir dos seus exageros e da sua, frequentemente ridícula, actuação. Desses tempos, saliento a obra de James Finn Garner, “Histórias tradicionais politicamente correctas”, editada em 1994. O autor é apresentado da seguinte forma: “James Finn Garner, descendente de falecidos machos brancos europeus, é escritor e actor em Chicago, Illinois, onde vive. A solo, esta é a sua primeira carcaça de árvore processada”. Segue-se o disclaimer: “Se acaso, por missão ou omissão, dei involuntariamente mostras de qualquer preconceito sexista, racista, culturalista, nacionalista, regionalista, etarista, aparentista, capacitista, dimensionista, especista, intelectualista, socioeconomicista, etnocentrista, falocentrista, heteropatriarcalista, ou de qualquer outro tipo, aqui peço desculpa e convido o leitor a sugerir a competente rectificação”, Benditos os tempos em que frases destas ainda nos arrancavam gargalhadas, em vez de nos fazerem temer pelo futuro cultural da descendência.
James Finn Garner começa por reinventar a história do Capuchinho Vermelho. Aqui seguem algumas “alterações”:
“No caminho para casa da avozinha, Capuchinho Vermelho encontrou um lobo, que lhe perguntou o que levava no cesto e a quem respondeu:
– São uns alimentos saudáveis para a minha avó, que é evidentemente capaz de tomar conta de si própria, como adulta madura que é.
– Sabes, minha querida, não é nada seguro para uma menina como tu andar sozinha pelo meio destes bosques! – retorquiu o lobo.
– Considero extremamente ofensiva a tua observação sexista – disse Capuchinho Vermelho – , mas vou ignorá-la tendo em conta a tua condição de pária da sociedade, cujo trauma te levou a criar uma mundividência própria, perfeitamente válida”.
A história termina apresentando ao leitor uma família alternativa, formada pela avozinha, o Capuchinho Vermelho e o lobo, enquanto o lenhador é decapitado, pelo seu perfil machista e especista, além do crime de porte de arma.
Segue-se “O Rei Vai Nu” em que o alfaiate declara ao monarca que o tecido especial que vai usar só será visto por certas pessoas: “O tipo de pessoas que desejaríeis ter no vosso reino, politicamente correctas, culturalmente tolerantes e que não fumem, não bebam, não riam de anedotas sexistas, não vejam demasiada televisão e não façam churrascos”.
Digna de nota é ainda, entre muitas outras, a seguinte passagem de “Branca de Neve”:
“Tinha por alcunha Branca de Neve, o que era indicativo da propensão discriminatória para associar as qualidades de simpatia e atracção ao que é claro e as de antipatia e repulsa ao que é escuro. Daí que, desde tenra idade, Branca de Neve fosse um alvo involuntário, embora afortunado, deste tipo de pensamento colorista”.
Seria certamente fastidioso para quem lê, o enumerar de situações entre o hilariante e o já preocupado, contidas na obra, pelo que a deixo por aqui. Só não consigo deixar de reflectir sobre o tempo que separa a actualidade da sátira produzida em 1994. São vinte e seis anos de condicionamento conceptual… Há quanto tempo nos andarão subliminarmente a formatar? E quão ferozmente o tentam fazer, hoje e aqui, onde a abertura da Caixa de Pandora libertou os mais aberrantes radicalismos, os mais assustadores fanatismos e uma galopante e incentivada ignorância. Só falta a Tirania para encontrarmos a temível trilogia pessoana.
Isabel Pecegueiro
* A autora usa a norma ortográfica anterior.
Maria J. / Maio 15, 2021
Reflexāo amarga e lúcida.
Veio-me à ideia una citaçāo atribuída a Einstein:
“Duas coisas sāo infinitas: o universo e a estupidez humana, mas quanto ao universo ainda tenho dúvidas”.
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Isabel Pecegueiro / Maio 15, 2021
Tenho as mesmas dúvidas de Einstein. Obrigada pelo comentário 😊
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Henrique Sousa / Maio 16, 2021
Muito bem! Hoje já não rio dessas coisas. Entro em pânico!
Parabéns pelo texto que pode ajudar a desacelerar a queda!
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Isabel Pecegueiro / Maio 17, 2021
Muito obrigada ☺️. Tem toda a razão, está a tornar-se assustador!
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