Guerra cultural em curso

The Party told you to reject the evidence of your eyes and ears. It was their final, most essential command.”

[George Orwell, 1984]


Há uma guerra cultural em curso, não a travar-se, por enquanto, nos tradicionais campos de batalha, tendo em vista objectivos classicamente militares (pontes, cidades, vias de comunicação, etc), mas nos media, no ensino e nas redes sociais, visando aquilo que na linguagem da guerra subversiva se designa por “conquista de corações e mentes”.

Há dias fui ver o novo filme da saga 007, “No time to die”.

A ideia era divertir-me.

Nos filmes, na música, na literatura, procuro entretenimento, boa disposição, ou abordagens abertas às grandes questões do ser humano e do Universo.

O que não procuro, embirro e solenemente detesto, são as doutrinações, os panfletos, as descaradas tentativas de me enfiar pela goela abaixo as virtudes, certezas e “verdades” teologais dos argumentistas, actores e outros doutores da mula ruça.

E lá estava o bom 007, um Daniel Craig a princípio bastante clássico, embora já menos marialva, que isso agora é considerado “machismo”, a fazer aquilo que um espião ao serviço de Sua Majestade é suposto fazer, conduzindo um bólide artilhado a grande velocidade, disparando e batendo nos malabarismos habituais.

Eis senão que surge o novo 007, já não o proverbial James Bond, mas uma senhora da cor “certa”, e, valhamedeus, não especialmente favorecida pela natureza, no que toca aos atributos femininos de que os homens genericamente gostam.

Suponho que a escolha do look tenha a ver com a “progressista” execração da beleza feminina, apurada por milénios de evolução e que agora é considerada uma “exploração da mulher objecto” ou coisa parecida.

Não, não calhou, é obviamente deliberado, há que enfiar pela goela dos espectadores que procuram apenas divertimento, os conceitos woke do momento e que se resumem num slogan simples e convenientemente maniqueísta, adaptado do célebre e infelizmente pouco compreendido “Animal Farm”:

– Homem branco mau, agressor, racista e opressor, tudo o resto bom, vítima e oprimido.


A verdade é que nos dias de hoje é praticamente impossível encontrar um filme que seja apenas um filme, porque a ideologia woke está virtualmente embutida em todos os que se vão produzindo.

Os antigos, por seu lado, ou são cancelados (no Canadá há escolas que, literalmente, queimam em grandiosas fogueiras, livros do Astérix, do Tintim ,do Lucky Luke, etc. por “insensibilidade social, e rebeubéu pardais ao ninho), ou levem com avisos de malignidade, como os que podemos ler nos maços de tabaco.

Por exemplo, um filme da Netflix que calhei ver há dias, “Blood Red Sky“, sobre uma senhora que viajava num avião desviado e calhava ser uma vampira, com muito sangue e cenas gore, pareceria inadequado para injectar ideologia woke.

Nada mais errado: afinal os maus, os sequestradores do avião, eram uns homens (obviamente) cujo objectivo não fica claro, mas se sugere ter a ver com bolsa, dinheiro e finanças, ou seja, uma nada subliminar referência à maldade do capitalismo.

Os bons?

Dois muçulmanos, cientistas e boas pessoas, claro.

Não importa que, no mundo real, quem ande de facto por aí a desviar aviões e a matar pessoas a esmo sejam certos fiéis do Islão.

No mundo woke, o que as cabecinhas levam como sugestão subliminar, até num filme de vampiros, é que o capitalismo é mau e os fiéis do Islão umas santas almas, de um modo geral.

Isto, claro, para não referir os incontáveis filmes e documentários sobre catástrofes climáticas que, invariavelmente, lançam nas sugestionáveis cabecinhas das criancinhas, a ideia de que aquece, arrefece, chove, faz seca, há terramotos, e morrem pinguins, etc., etc., por culpa exclusiva do malvado capitalismo e do “heteropatriarcado branco”.

Vários estudos referem que este clima de permanente anúncio do apocalipse está a deixar marcas profundas nas mentalidades das novas gerações e não é por acaso que aparecem as Gretas assustadas e furibundas, prontas a fuzilar quem não lhes apare o transtorno mental, ponta do iceberg de uma geração vitimista, que acredita piamente que estamos na véspera do fim do mundo, que estes são os maiores problemas da humanidade, que os seus ascendentes são gente horrível, e que vota em consonância, levando ao poder verdadeiros alucinados que decidem e decidirão políticas que nos irão inevitavelmente levar ao suicídio, à pobreza, à intolerância, à fome e ao declínio.

E os elencos dos filmes, obviamente são agora, sem grandes excepções, deliberadamente woke, os protagonistas bons são sempre representantes das classes “oprimidas” ao passo que os maus são invariavelmente esses que o leitor está já a adivinhar.

Os próprios Óscares, só podem doravante ser atribuídos a filmes que contenham expressamente os mandamentos sagrados da ortodoxia woke, metidos à martelada, se necessário for, como por exemplo, a Ana Bolena ser representada por uma artista da Jamaica.

Já o contrário, por exemplo, meter o Brad Pitt a representar o Shaka Zulu, ou um actor de pele branca e fazer a voz de um personagem de cor, mesmo que seja de desenhos animados, é um escândalo revelador de intolerável “racismo sistémico” e indigna “apropriação cultural”.

A menos que o homem branco em questão seja “progressista” que, ficámos a saber na recente cerimónia dos Globos da SIC, implica vestir-se de matrafona, situação de grande virtude “progressista”, na qual o marmanjo passa a ser boa pessoa, toca viola e cheira a rosas, tendo pois o direito a frequentar os círculos virtuosos da bempensância “progressista”.

Nos EUA, esta guerra cultural, que até o presidente francês alvitrou estar a destruir o país, é já abertamente racista, embora os que a promovem se reclamem paradoxalmente de combatentes antirracistas, numa notável pirueta que faz jus às clarividentes palavras de George Orwell, que encimam esse texto.

Hoje, nos EUA, já se fala abertamente num Hino Nacional para brancos e outro para negros, na verdade já se tocam em cerimónias desportivas e outras.

Espera-se, na mesma lógica, hinos nacionais para amarelos, peles-vermelhas, latino-americanos, malaios, gordos, magros, homens, mulheres, transexuais, gays, lésbicas, dois espíritos, comedores de sushi, enfim, virtualmente tudo o que puder ser utilizado para distinguir e dividir as pessoas susceptíveis de invocar um qualquer episódio de vitimização às mãos do temível “heteropatriarcado branco”, mesmo que ocorrido no tempo do profeta Jeremias.

Curiosamente, no aniversário da Batalha de Lepanto, que ajudou a travar o avanço muçulmano no Mediterrâneo, e que se saldou por uma notável vitória das forças espanholas e venezianas, poderia fazer algum sentido evocar a libertação de mais de dez mil remadores cristãos que, escravizados e agrilhoados pelos muçulmanos, propulsionavam as galés otomanas, mas infelizmente não fazem parte do grupo das vítimas por antonomásia, pertenciam ao “heteropatriarcado branco” e por isso não podemos nós invocar hoje a conveniente vitimização e reivindicar a orgulhosa pertença às vitimas cósmicas.

Voltando ao presente, é também nos EUA que, virando do avesso o sonho de Martin Luther King, se entende agora ser “progressista” e “antirracista” a adopção de medidas racistas como escolas, alojamentos, cerimónias, etc., para negros, para brancos, para asiáticos, ou seja, o apartheid passou a ser, nestes tempos de pernas para o ar, uma louvável medida antirracista, mesmo que as pessoas vejam com os seus próprios olhos que se trata de puro racismo.

Nos EUA, verdadeiro laboratório do que aí vem, vai-se ainda mais longe e os Mamadous e as Joacines estão de olho: a própria História do país tem agora duas versões: a versão tradicional, resultante do modo como se costumava fazer História, isto é, compilando factos, documentos, etc., e a versão woke, assente num conjunto de diatribes, falsidades, e opiniões primárias e ideológicas, concatenado às três pancadas por uma jornalista de pele da cor “certa” (Nikole Hannah-Jones), veiculado por um jornal de esquerda (New York Times) e convenientemente chancelado por um Pulitzer crescentemente enviesado: o chamado Projecto 1619, que é já ensinado às criancinhas nas escolas, como se fosse produto de qualidade, bem como a chamada Teoria Critica da Raça, que basicamente diz que os EUA são um país sistemicamente racista (comparado com que outro?) e que todos os brancos e só os brancos são racistas por natureza, já nascem assim com esse novo Pecado Original.

Como é óbvio, à medida que milhares de pais por todo o país, começaram a sentir os efeitos desta idiótica doutrinação nas cabeças dos filhos, aterraram em peso nas reuniões das escolas engajadas na propagação da doutrina, protestando, berrando, exigindo, etc.

Um governador woke, da Virgínia, indignado, proclamou, à boa maneira soviética, que os pais não tem nada a ver com a educação dos filhos, o estado é que diz o que as jovens cabecinhas devem aprender, e a Administração Biden foi mais longe, propondo-se designar como terroristas as mães e os pais que não concordam com tão edificantes ensinamentos.

E promete actuar em consonância, atirando o FBI sobre os façanhudos terroristas, porque, naquilo que era conhecido pela “land of free”, parece que passa a ser crime federal ir à reunião da escola e proclamar ideias contrárias à nova doutrina da fé.

A guerra cultural entrou numa fase tão delirante que até um esquerdista clássico como Bill Mahler, parece de repente ter-se transmutado em perigoso reaccionário, racista e opressor dizendo barbaridades como:

“Segregar em função da raça é mau” porque “reforça a terrível mensagem de que há duas nações separando-se inapelavelmente uma da outra”. E “se temos dois hinos, por que não três? Ou cinco?”.

“Agora, metade dos dormitórios escolares são determinados pela pureza racial”, tornámos-nos tão woke que voltámos ao racismo. O que se segue aos dormitórios separados, hinos, cerimonias, cafés, ginásios, bairros?”

“Temos de parar de olhar para esta nova segregação woke como se fosse um avanço cultural. Não é!”

Pois, eu também acho que não é.

E, já que estou em maré de achismo, acho que Macron tem razão e que esta ideologia woke, que vai infestando as novas gerações numa longa marcha através das instituições, é um terrível prenúncio para o que nos espera, se não soubermos fincar os pés e ganhar a devastadora guerra cultural que a procura impor.

Infelizmente, para já, estamos a perder!

José do Carmo

* O autor escreve segundo a anterior norma ortográfica.

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Latest comments

  • Brilhante artigo, escrito com muita clarividência e desassombro.
    Essencial, nos dias de hoje.
    Parabéns ao autor, q eu desconhecia. Mas sobretudo OBRIGADO pelo serviço cívico tão valioso que prestou ao escrever este artigo.

  • Muito bem, como sempre!
    Parabéns António 👌

  • Parabéns! Muito actual!

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