Fale connosco

É impossível contar todas as palavras que circulam no mundo, elas são infinitas como os grãos de areia do deserto. Podem ser odiadas e amadas como os seres humanos, porque têm os mesmos defeitos e virtudes: podem ser falsas ou verdadeiras, hipócritas ou sinceras, credíveis, honestas, fracas mas autênticas. Criam e destroem ideias e ideologias, crenças e reputações. Tal como as pessoas, as palavras são capazes de suscitar grandes emoções e mudanças radicais nas sociedades, mas também estão sujeitas a manipulação, são compradas e vendidas conforme as conveniências. A sua força emocional é potente, e a influência que têm na vida dos povos é determinante. O escritor e pedagogo Gianni Rodari comparava os efeitos da palavra, na nossa mente, aos duma pedra lançada nas águas duma lagoa:

“… uma palavra, lançada na mente ao acaso, produz ondas superficiais e profundas, provoca uma série infinita de reacções em cadeia, envolvendo na sua queda sons e imagens, analogias e recordações, significados e sonhos, num movimento que se relaciona com a experiência e com a memória, a fantasia e o inconsciente e que se complica pelo facto de que a própria mente não assiste passivamente à representação, mas nela intervém continuamente, para aceitar e rejeitar, relacionar e censurar, construir e destruir. (1)


Para poetas e escritores, as palavras são alimento para o espírito. Escrevem-nas lentamente com a paciência de um escrivão, ou de jacto, num impulso libertador de emoções. Há quem as guarde numa gaveta real ou virtual para depois serem lidas e ruminadas, no silêncio da intimidade da mente, quase às escondidas, como um vício secreto. Outros há que fazem delas o seu ganha-pão.

Muitas pessoas morreram e morrem por não renunciar à palavra. Os poderosos viveram e vivem graças à sua ajuda: manipulando-as – falas de santo, unhadas de gato – e limitando ou privando os outros do seu uso. A palavra é uma faca de dois gumes. Em si mesma é só um conjunto de letras, num contexto específico perde ou ganha sentido, força, poder.

No nosso dia a dia palavroso, acontece ler a frase «Fale connosco», ao visitar sites que oferecem vários serviços. Esta exortação, composta de duas simples palavras, ressoa aos nossos ouvidos, a nível emocional, como um convite amigável; leva a pensar que a interacção será personalizada e atenta às nossas necessidades. Mas, a ser-se rigoroso, não se trata propriamente de falar mas de escrever os nossos desejos e as nossas razões, de forma impessoal, no dispositivo ligado à net. Como se sabe, a palavra escrita é muda.

O “diálogo” consiste em seguir um percurso estabelecido, numa sequência de cliques, espreitar, seguir instruções, farejar entre opções predeterminadas, com o fim de escolher as que correspondem às nossas exigências. Se houver que preencher e enviar um formulário, antes que a cabeça comece a formigar de questões e dúvidas entrando em pânico, antes que surja a enxaqueca, recorremos à sabedoria das FAQ, que estão ali mesmo para dissipar incertezas, preencher lacunas e consolidar convicções.

Mas o site vai mais longe, confessa também que querer que tenhamos “a melhor experiência de navegação possível” e, numa atitude quase humilde, abatendo as últimas barreiras da nossa
desconfiança, pede-nos que lhes indiquemos como nos podem ajudar. E nós, cheios de benevolência digital, tocados no nosso orgulho, respondemos à chamada mística, e lá continuamos a pesquisa, com a fé e a resignação dum crente, fornecendo-lhes dados pessoais e indicações que os ajudem a ajudar-nos.

Se por acaso precisarmos de falar com um interlocutor, em carne e osso, geralmente o site indica um número telefónico para a assistência ao cliente. Nada mais prático e fácil, para um utilizador de média habilidade e inteligência: se quiser… marque “1”, se pretender… marque “2”, se desejar… marque “3” para falar com um operador… marque “4”, e assim por diante.

Contudo, falar com um assistente revela-se, com frequência, uma prática titânica. É um verdadeiro desafio à paciência, pelo tempo de espera; uma prova de estoicismo pela suportação de uma música repetitiva; um duelo com a tecnologia que faz cair a linha, ou nos deixa pendurados a ouvir o inquérito sobre a satisfação do serviço fornecido, sem que este tenha sido realmente prestado.

É nesse momento que nos sobe a vontade de protestar ao nariz, e desejamos mesmo dar-lhes duas palavrinhas, sem rebuço. Não tanto para expor e resolver o nosso problema, mas sim para rugir a nossa revolta; pelo tempo perdido, pelo dinheiro gasto no telefonema e pelo stress mental a que nos obrigam. Quando, enfim, se esfria a nossa imaginação argumentativa, pousamos solenemente os braços sobre a secretária e recomeçamos a tamborilar os dedos no teclado. Desta vez apaziguados, com a certeza de que a rede é quem mais ordena!


Maria J. Mendes

* A autora usa a norma ortográfica anterior.

(1) Rodari, G. (2018). Grammatica della fantasia. Einaudi Ragazzi. Tradução do excerto pela autora

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Latest comments

  • Excelente artigo, parabéns! Lembrei-me logo das avarias no meu serviço de NET, TV e telefone, e na tortura que é ligar para lá.

  • Muito obrigada pela leitura e comentário.

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