
A história do século XX é uma tragédia carregada de genocídios.
Calcula-se que morreram, no século XX, por efeito directo das guerras e das perseguições políticas, mais de 100 milhões de pessoas. Morreram mais pessoas, no século passado, por efeito directo das guerras e das perseguições políticas do que nos vinte séculos anteriores. O século XX foi o século da mentira, da hipocrisia e dos genocídios, mas também foi o século das declarações e leis sobre os direitos humanos. A retórica vazia dos direitos humanos é a herdeira directa da ética deontológica kantiana, igualmente vazia e sem capacidade de aplicação às situações particulares.
Há várias razões que explicam este fenómeno e esta contradição: o decréscimo das práticas religiosas nas comunidades dos países europeus, o definhamento da ética comunitária, a adesão aos messianismos marxista e nazi-fascista, a generalização da ilusão igualitária e, claro está, o formidável progresso tecnológico na construção de novas armas de elevado poder mortífero.
Todas as culturas e civilizações tiveram os seus pecados e os seus genocídios e não compete às gerações posteriores a responsabilidade dos actos ou a reparação dos males. Cada geração representa um novo começo. O melhor que cada geração pode fazer é a crítica das práticas que a geração anterior lhe deixou, aprender com os erros e comprometer-se com a realização de práticas excelentes. A Igreja Católica não tem de pedir perdão pelo colonialismo. O frei Bartolomeu de las Casas e o padre António Vieira são apenas dois exemplos de grandes figuras da Igreja que se bateram, ao lado das populações indígenas, pela defesa dos seus direitos, liberdades e modo de vida.
Antes dos europeus chegarem a África, já os árabes escravizavam as populações negras da África Central e antes dos árabes, já as populações negras escravizavam os vizinhos mais fracos.
A escravatura em Atenas era mais civilizada que a exploração do proletariado, na Europa do século XVIII. Estou em crer que os escravos domésticos de Atenas (século IV a.C.) tinham uma melhor vida e mais dignidade do que muitos dos pobres que vivem em cidades europeias actualmente. Os milhares de sem abrigo que vegetam nas capitais europeias, as centenas de milhar de pessoas sem acesso a cuidados de saúde, na União Europeia e nos EUA, os milhões de desempregados da União Europeia e um terço da população portuguesa que vive abaixo do limiar da pobreza são tristes realidades do século XXI que nos obrigam a ser humildes e a recusar a arrogância cultural.
Os senhores atenienses cuidavam dos escravos e, regra geral, tratavam-nos bem e com consideração. Convém não confundir a escravatura em Atenas com a escravatura romana.
Na Idade Média, os servos da gleba, gozavam da protecção e da segurança oferecida pelos senhores. A sua inserção numa comunidade unida por fortes crenças religiosas garantia-lhes a esperança.
Um jovem licenciado que trabalhe 40 horas por semana pum call center, em Portugal, é capaz de ter mais stress, menos esperança e mais tristeza do que os escravos de Atenas. Os jovens licenciados, que trabalham 40 horas por semana por um salário de 700 euros e com contratos de seis meses, não gozam da segurança nem da protecção que era devida aos servos da gleba. Quem ganha 700 euros por 40 horas de trabalho e tem de pagar 600 euros pelo aluguer de um apartamento, tem, naturalmente, pior vida do que os escravos de Atenas do século IV a.C, que habitavam na “vila” do senhor e partilhavam com os senhores alimento, práticas e costumes.
O colonialismo foi terrível, provocou imensas mortes e deslocações forçadas, mas os 100 milhões de mortos provocados pelas guerras no século XX causaram muito mais sofrimento. Na China, nas décadas de 1950 e 1960 morreram à fome mais de 30 milhões de pessoas. Na Rússia de Stalin foram assassinadas mais de 20 milhões de pessoas por motivos políticos. No Cambodja, na década de 1980, em três anos, foram mortas 2 milhões de pessoas. Tudo isto em nome do messianismo marxista. Em Angola, em 1977, Agostinho Neto, o poeta e médico “humanista”, mandou fuzilar ou permitiu que fuzilassem milhares de dissidentes do MPLA. As revoluções devoraram os seus filhos. A guerra civil angolana matou mais de 500 mil pessoas.
A escravatura na Atenas de Aristóteles era menos cruel e menos stressante do que a vida dos pobres no século XXI. Os camponeses da época do feudalismo tinham mais protecção e mais segurança do que uma boa parte dos assalariados pobres portugueses do século XXI.
Um olhar, ainda que breve, sobre as conquistas do capitalismo ajuda a perceber o que se ganhou e o que se perdeu. Registou-se, sem dúvida, um avanço científico e tecnológico sem precedentes, com consequências positivas ao nível da farmacologia e da medicina, aumentando a esperança média de vida e permitindo a cura de muitas doenças. Mas o que se perdeu foi muito: milhões de pessoas arrancadas das suas comunidades e deslocadas à força para trabalhos forçados nas plantações da América e nas manufacturas e fábricas, nos séculos XVII, XVIII e XIX; 100 milhões de mortos por efeito directo das guerras do século XX; 50 milhões de mortos por efeito das perseguições políticas do século XX; democratização e generalização do abuso de drogas com milhões de mortos por overdose, sida e tuberculose; devastação do continente africano por efeito da rapina colonial e da imposição de ideologias materialistas e individualistas; destruição do meio ambiente e dos recursos naturais à escala planetária; alastramento da pobreza e da miséria a largas camadas da população por efeito de políticas destruidoras dos laços comunitários.
Em termos estéticos, a perda foi devastadora. Basta lembrar que os homens da Idade Média nasciam, cresciam e viviam em espaços naturais de rara beleza, que os homens do século XXI só podem aspirar a usufruir quando visitam os parques nacionais e as reservas naturais. Quando entramos numa igreja românica ou numa catedral gótica, compreendemos bem o esplendor estético da tradição medieval cristã. Quando percorremos as nossas cidades desordenadas, pejadas de automóveis, repletas de prédios sem beleza nem harmonia, é fácil de concluir o que os homens e as mulheres do século XXI perderam.
Aos assalariados pobres do século XXI sobra a existência cinzenta e triste dos bairros suburbanos, das gaiolas urbanas em que se transformaram os apartamentos para pobres, os espaços públicos ocupados por automóveis, o ruído, o medo gerado pela insegurança urbana, a alienação das televisões e dos centros comerciais e a dependência dos bancos por efeito da escravização dos créditos para toda a vida.
Ramiro Marques
* O autor usa a norma ortográfica anterior.