
* Ilustração de Frits Ahlefeldt
“Este Sermão (que todo é alegórico) pregou o Autor três dias antes de embarcar ocultamente para o Reino, a procurar o remédio da salvação dos Índios”. É esta a introdução ao “Sermão de Santo António”, pregado no ano de 1654, na cidade de S. Luís do Maranhão, pelo Padre António Vieira.
Aqui sobressaem imediatamente três aspectos: Vieira embarca “ocultamente”, por correr perigo de atentados contra a sua vida por parte dos colonos; para o Reino, ou seja, a fuga ocorre do Brasil para Portugal, em busca de ajuda e protecção régia; “a procurar o remédio da salvação dos Índios”, revelando que se trata de proteger os indígenas da escravidão. Nos tempos estranhos e perigosíssimos que atravessamos, estes aspectos merecem ser sublinhados, já que os novos inquisidores da cancel culture, ainda recentemente enviaram os seus vândalos a desfigurar, sob acusação de racismo, a estátua daquele a quem Fernando Pessoa chamou o “Imperador da língua Portuguesa”. Quão atrevida pode ser a ignorância!… Pois, esse alvo de acusações torpes e infundadas, não só tinha ascendentes negros, como dedicou a sua vida, arriscando-a, a defender os Índios de serem escravizados, bem como os escravos africanos de serem maltratados.
Contextualizando, não fora a protecção régia, sobretudo de D. João IV, o Restaurador da nossa independência, não teria o Padre usufruído da longa vida que lhe permitiu conhecer e influenciar quase todo o século XVII. Os seus sermões, na igreja jesuíta de São Roque, em Lisboa (junto à qual se ergue a estátua que foi desfigurada, viam disputar pela alta nobreza os melhores lugares, marcados com grande antecedência, como acontece hoje em dia com os concertos de celebridades da música internacional. E contudo, já quando no Brasil, junto à selva do Maranhão, as suas palavras atingiam de forma certeira e violenta todos os vícios dos colonos e, em particular, o seu desprezo por outros seres humanos, brancos, negros ou vermelhos. E a animosidade dos ouvintes contra a sua pessoa aumentava dia a dia de ferocidade.
Não surtindo o efeito esperado a sua pregação, já que, por motivos que a sua oratória destaca, “o sal da terra” não salgava e a terra não se deixava “salgar”, segue o exemplo do Santo seu homónimo, deixa os homens e vai pregar aos peixes. O Sermão é uma extraordinária peça de oratória, revelando uma cultura ímpar, aliada à excelência da escrita e a enorme inventividade. Vários textos religiosos, bíblicos ou outros, apoiam, como argumentos de autoridade, o discurso.
Alegoricamente, os peixes representam todos nós, humanos, sendo que críticas ou avisos específicos atingem alvos específicos. É assim que, dividido em elogios e repreensões aos peixes, em geral e em particular, poucos são os vícios humanos que escapam ao crivo.
O polvo, hoje símbolo dos vários braços das várias máfias, é apontado como o maior traidor dos mares. Porque se oculta em camuflagem para melhor surpreender as vítimas, porque amarra as presas com as suas oito correntes tentaculares e, sobretudo, porque com a tinta negra que lança, escurece a mais pura das águas. Exactamente como o poder corrupto nos engana hoje, nos oculta o que deveria ser transparente e, por fim, nos amarra, com a força brutal ou subreptícia que adquire pelas mais diversas vias.
Odiosos também são os “pegadores” pequenos peixes que aderem aos de grande porte, viajando com eles, subindo com eles, mas também encontrando o seu fim quando também eles o encontram. E não será preciso ser muito perspicaz para reconhecer os nossos pegadores humanos. Os de hoje, aqui e agora. Subservientes, adulando quem está na mó de cima, comendo-lhe as migalhas, mas mergulhando no esquecimento quando o seu “tubarão” cai em desgraça. Infelizmente, como a corrupção está demasiado enraizada, há demasiados destes pegadores que sobrevivem e se colam ao poderoso que se segue.
O maior crime destes alegóricos peixes é, contudo, a “universal antropofagia”: comerem-se uns aos outros, embora irmãos e seres da mesma espécie. Como agravante, sublinha Vieira, são os grandes que comem os pequenos, criando assim um sem número de vítimas para satisfazer o seu apetite de predadores.
Grave é também a plebe ser comida como o pão, ou seja, a toda a hora e em todos os dias, porque há dias de carne e dias de peixe, mas o pão é alimento que acompanha todas as refeições. No contexto do Sermão, os peixes grandes representam os colonos, sendo que os pequenos representam os índios. Não nos será, todavia, difícil transpor esta alegoria para os nossos dias e as nossas gentes. Assuntos e exemplos não faltariam, desgraçadamente. Falta é alguém, religioso ou leigo, cujo carisma e dom de oratória, nos salve da corrupção e da miséria moral e financeira. À falta de gente assim, aliviemos então a amargura com uma das maiores iguarias nacionais, a doce literatura.
Isabel Pecegueiro
* A autora usa a norma ortográfica anterior.
Maria J. / Julho 1, 2021
Este artigo, impecável, leva-me a uma breve reflexão.
Chamar atrevida à ignorância, parece-me um eufemismo, vou mais longe e pergunto
em geral, que proveito têm estes “hooligans” da cancel culture?
Se por detrás de cada acção, há sempre uma motivação mais ou menos declarada, no caso em questão, excluo que procurem reconhecimento público individual, visto que o seu nome não vem nos jornais, por isso não podem contar aos outro, com satisfação «aquela fui eu que deitei abaixo!»
Então, será que os pagam?
Para os curiosos, sobre o Padre António Vieira,
https://www.youtube.com/watch?v=G5hz2_nlwSU
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Velho do Restelo / Julho 1, 2021
Cara Maria, a motivação só seria necessária se houvesse “inteligência”, mas tudo indica que esse é o 1º grande défice, caso contrário não arriscariam perseguir alguém que nem a origem conhecem, muito menos o que fez e disse! São massas amorfas, de olhos postos no smartphone à espera que alguém lhes diga o que fazer naquela hora para se sentir ocupado!
Na volta, para eles isto é um pokémon para adolescentes e adultos retardados!
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Isabel Pecegueiro / Julho 1, 2021
É bem possível que os mandantes lhes paguem em favores académicos, políticos, ou outros.
Obrigada pelo comentário!
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