Com olhos em Gaza

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Na semana passada, o comandante da Guarda Revolucionária Iraniana, Hossein Salami, disse, em estilo de ameaça, que a “entidade sionista” (como os islamistas iranianos costumam referir-se a Israel, recusando dizer o nome), era vulnerável a uma grande operação táctica porque se trata de um país pequeno e sem profundidade estratégica. Referiu como exemplo o míssil S-200 que voou da Síria e atingiu a zona de Dimona, onde se situa uma central nuclear israelita.

Repetiu, afinal de contas, a máxima estratégica do então Presidente iraniano, Rafjansani que, a seu tempo, sublinhou que uma única arma nuclear seria suficiente para erradicar a “entidade sionista”.

É verdade, Israel é um país pequeno, mais pequeno que o Alentejo e com uma largura que, no seu ponto mais estreito, anda pelos 15 Km, o que não pode deixar de ser preocupante quando do outro lado da fronteira estão inimigos existenciais. 

Em 11 de Maio, centenas de mísseis de longo alcance atingiram várias cidades, incluindo Tel Aviv e Jerusalém.

Em três dias, o Hamas, movimento islamista e terrorista que controla a Faixa de Gaza, lançou sobre as cidades israelitas mais de 1200 mísseis balísticos…and counting

É muito provável que este súbito ataque esteja ligado às ameaças iranianas, não só porque o Hamas é apoiado pelo Irão, mas também porque a Jihad Islâmica, um proxy iraniano, está igualmente a lançar os seus mísseis em estreita coordenação com o Hamas.

Não é a primeira vez que estes grupos lançam ataques massivos, mas o que está a acontecer é diferente, dada a concentração dos lançamentos em momentos e alvos específicos, o que de algum modo satura as defesas antimíssil israelitas (Iron Dome), possibilitando que alguns mísseis atinjam alvos e provoquem mortes de civis.

O Irão e os seus proxies, como o Hezbollah, seguem de perto a política interna e os media israelitas e estudam a maneira como Israel retalia e gere os conflitos, de modo a lograr uma determinada equação que dissuada os ímpetos belicosos dos seus vizinhos.

Estes inimigos existenciais de Israel estão muito mais bem equipados para lançar barragens massivas de mísseis, em caso de conflito (só o Hezbollah terá mais de 150.000 em arsenal).

No caso do Hamas, essa gestão tem passado por alcançar longos períodos de paz, sem necessidade de uma operação terrestre, respondendo com dureza aos esporádicos lançamentos de mísseis.

O Hamas faz também a sua gestão, usando os mísseis para conseguir vantagens estratégicas e negociais, dispondo-se a encaixar duros golpes tácticos. 

Várias vezes ao longo dos últimos anos, Israel esteve na iminência de desencadear uma operação terrestre em Gaza, mas o Hamas, depois de súbitos surtos de bombardeamentos, recolhe as garras e solicita a mediação externa para um cessar-fogo que surge, invariavelmente, através dos diplomatas egípcios e do Qatar.

Como é óbvio, para o Hamas há sempre um pretexto e uma narrativa que justificam o lançamento de mísseis em função de uma qualquer “provocação” israelita.

A presente escalada, que o Hamas alegou ter sido feita em resposta às provocações israelitas relativas aos “lugares santos” e à repressão policial sobre os tumultos muçulmanos em Jerusalém, (alegação irracional, porque se trata de questões internas de Israel e o Hamas apenas governa a Faixa de Gaza) foi pensada e planeada.

Efectivamente, na noite de 10 de Maio, o Hamas exigiu que a polícia israelita deixasse o Monte do Templo e o bairro de Sheikh Jarrah o que corresponde mutatis mutandis, para se compreender a irracionalidade do ultimato, a uma exigência da Al Qaeda, para que a polícia portuguesa deixasse as imediações da Mesquita de Lisboa, por exemplo. 

Ora, o Hamas sabia muito bem que tal não aconteceria, pelo que era clara a sua intenção de escalar o conflito e atacar Tel Aviv.

Até agora, o Hamas está a definir as regras do jogo e tem a iniciativa do conflito.

Para além do incentivo e provável coordenação com os iranianos, a escalada pode fazer o Hamas marcar alguns pontos com o público árabe, incluindo a política interna palestiniana, mas vai custar à Faixa de Gaza e aos palestinianos que aí vivem um custo altíssimo que, provavelmente, os líderes do Hamas, terão subestimado.

Assim como aconteceu com o Hezbollah em 2006, o Hamas aposta na ideia de que a liderança israelita, a braços com uma interminável instabilidade politica, desejará pôr termo ao conflito o mais rapidamente possível.

Tem sido este o padrão do actual primeiro-ministro israelita.

Sob a liderança de Netanyahu, Israel basicamente gere o conflito de modo a evitar escaladas, aceitando o domínio do Hamas em Gaza, com o objectivo de manter a divisão política dos palestinianos.

O Hamas faz, de vez em quando, ouvir a sua voz através do lançamento ocasional de mísseis e balões incendiários, numa dança cuidadosamente coreografada, como gorilas que se enfrentam batendo com os punhos no próprio peito, mas sem chegarem a vias de facto.

Todavia, desta vez o Hamas pode ter ido longe demais.

Surgir como o paladino de Jerusalém, protector da Mesquita de Al-Aqsa, campeão da honra palestiniana, face a uma Autoridade Palestiniana aparentemente acomodada, promover tumultos em Jerusalém e Lod, fazer ultimatos a Israel e conseguir imagens de “vitória” (a evacuação do Parlamento israelita, em função do aviso de mísseis sobre Jerusalém, a interrupção da Marcha das Bandeiras, edifícios e carros a arder) e alterar as regras da equação da dissuasão com Israel, é previsivelmente o melhor desfecho que o Hamas pretende alcançar com este súbito exacerbar do conflito.

O problema é que não controla o seu desfecho e o seu plano de saída parece assentar exclusivamente na aposta arriscada de que Israel vai querer acabar o conflito rapidamente, pela pressão interna e internacional.

O que Mohamed Deif, comandante das Brigadas Izz ad-Din al-Qassam (o exército do Hamas) pensou quando decidiu atacar em pleno Eid al-Fitr (celebração no final do mês do Ramadão) não se sabe mas, claramente, as considerações políticas da liderança do Hamas não tiveram muito em conta os interesses reais dos habitantes de Gaza.

Os berros “Deif, rebenta com Tel Aviv”, gritados pelos árabes no Monte do Templo, e o interesse iraniano parecem ter levado a melhor e a situação é agora a de uma guerra aberta.

Para já, tudo leva a crer que foi um erro de cálculo, como o do Hezbollah em 2006.

Em termos políticos, um conflito prolongado com o Hamas pode até convir ao governo do actual primeiro-ministro, porque torpedeia e tende a inviabilizar a eventual coligação alternativa integrando os partidos de Yair Lapid, Naftali Bennett, e o partido árabe e islâmico (Ra’am).

A nível militar, Israel pode e está já a aproveitar para destruir centenas de alvos de elevada importância, eliminando também vários líderes do Hamas.

A nível estratégico, Israel não pode terminar o conflito sem impor danos muito significativos ao Hamas, não só para restabelecer a dissuasão directa, mas também para servir de aviso aos atentos observadores iranianos e seus proxies.

É por isso que, num momento em que o Hamas pede já esforços para um cessar-fogo, Israel recusa e declara taxativamente que isso não é para já e que só acontecerá nos seus termos.

No meio disto tudo, convém todavia notar que os árabes da Cisjordânia permaneceram mais ou menos indiferentes ao conflito, em contraste com os árabes israelitas que desencadearam tumultos, incendiaram sinagogas e lincharam pessoas.


José do Carmo
Editor de Defesa do Inconveniente

* O autor escreve segundo o antiga norma ortográfica.

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