Ciência, ideologia e censura

O preocupante fenómeno do crescimento da censura nas redes sociais e no espaço público é uma séria ameaça civilizacional.

O Ocidente, não sendo apenas, como o nome parece indicar, uma referência geográfica, assenta, para além da democracia, na separação de poderes, no primado da lei, etc., e em alguns direitos fundamentais, como a livre expressão de ideias.

A Ciência, essa tentativa sistematizada (método cientifico) de compreender os “como?” da natureza, é, ela mesma, uma criação do Ocidente, só possível num ambiente de livre debate, no qual qualquer teoria, tese, modelo ou hipótese, é passível de refutação e jamais uma “verdade”.

No que toca à ideologia, a censura assenta hoje num fundamentalismo “woke” que, em nome de putativas boas intenções, cancela, ostraciza, pune, ataca, prejudica e condena todos aqueles que não pensam segundo a ortodoxia dominante.

Quanto à Ciência, a censura assenta em “fact checkers”, uma espécie de notários ou guardiões da “verdade”, criação recente que se tem multiplicado como cogumelos, principalmente no terreno fértil da actual pandemia que lhes deu o gás necessário, em sintonia com as medidas políticas autoritárias e restritivas que a “situação exige”.

O medo é muito poderoso e sob a sua influência as pessoas aceitam coisas inimagináveis.

Todavia o Covid foi apenas um acelerador, porque a pulsão para censurar ideias “erradas”, já estava a levedar rapidamente, há alguns anos, em particular nos think tanks da esquerda, detentora daquilo que Gramsci in ilo tempore designou por “hegemonia cultural”.

Actualmente já está em velocidade de cruzeiro com o Facebook, YouTube, Twitter, etc, a removerem milhões e milhões de conteúdos e perfis, e a inserirem centenas de milhões de avisos e conselhos, por “informação enganosa” ou “desrespeito pelas regras da comunidade”, ou “insensibilidade”, etc., sem, no caso da Ciência, distinguirem entre coisas obviamente tolas, e opiniões científicas fundamentadas, como se a “verdade científica” existisse e fosse fácil de verificar e carimbar pelos notários da verdade.

O resultado é a instauração paulatina de uma “verdade oficial”, sem contraditório, a politização da Ciência, e uma degradação geral das liberdades individuais, incluindo a fundamental e emblemática liberdade de expressão.

Mas quem são estes notários da verdade? Quem os controla e verifica? De onde lhes vem a presunção de autoridade científica?

É claro que as redes sociais declaram que fazem as coisas para o bem (de boas intenções está o Inferno cheio, como diz o povo) e encaminham para fontes que elas mesmo catalogam como “credíveis” como a OMS, removendo tudo o que estas “organizações credíveis” não atestam.

A actual pandemia mostrou contudo que as “verdades oficiais“ das fontes “credíveis” mudaram várias vezes com o vento da realidade, e o que ontem era censurado como “desinformação”, no dia seguinte já era “verdade oficial”, devidamente carimbada pelos notários.

O Twitter, gere a ”verdade” com os seus notários internos, geralmente gente jovem, notoriamente ignorante de tudo o que não seja a sua especialização e de pensamento bastante enviesado à esquerda, enfim, o fruto de anos de doutrinação e exposição desprotegida à hegemonia cultural imposta pelos “intelectuais orgânicos” que completaram com sucesso a sua “grande marcha através das instituições”.

O Facebook recorre, no que toca à Ciência, a entidades externas, cuja cúpula é a International Fact-Checking Network (IFCN), propriedade de uma escola de jornalismo da Flórida (Instituto Poynter), que tem como grandes dadores uma agência do governo federal americano (The National Endowment for Democracy, que em 2018 a Adminstração Trump propôs desorçamentar), o Google e o próprio Facebook.

O Instituto Poynter é proprietário do Tampa Bay Times, um jornal enviesado à esquerda, e do conhecido fact checker “PolitiFact”, também ele claramente enviesado à esquerda.

No que toca a conteúdos científicos, a IFCN serve-se de organizações como SciCheck, Metafact, Science Feedback, etc,  e cientistas escolhidos a dedo e que, segundo o Wall Street Journal (Fact checking Facebook’s fact checkers) basicamente produzem apenas opinião, tão válida ou inválida como a que se arrogam o direito de rotular e verificar.

Ora, é de acordo com a natureza controversa destas meras opiniões que as plataformas decidem o que é verdade e o que é mentira, como se a Ciência fosse feira de consensos, de maiorias, ou um Livro de Verdades escritas em pedra.

Mas a Ciência é, pela sua própria natureza, feita de refutações, incerteza, corroborações, debate, argumentação, revisão, etc. Um modelo, uma tese, uma hipótese, uma teoria só é científica se for refutável.

Não compete às redes sociais ou aos governos, dizerem qual é a “verdade cientifica”, porque ela nem sequer existe.

Calar opiniões contrárias com a sentença de “desinformação” é negar o próprio debate científico e nesta pandemia, bem como noutros temas como o clima, os cada vez mais escassos cientistas que se atrevem a veicular opiniões e hipóteses menos ortodoxas, correm o sério risco de serem censurados, ostracizados, insultados, afastados de fundos, cátedras, financiamentos e possibilidade de publicação de artigos em revistas científicas, mesmo que já tenham recebido prémios Nobel.

A coisa chega a ser como o famoso Catch 22: a Health Feedback, uma das organizações a que o Facebook recorre para o fact-checking, assume claramente que não escolhe cientistas cuja credibilidade tenha sido posta em causa por propagarem desinformação, com ou sem intenção. Ou seja, os próprios escolhidos para julgarem se algo é ou não desinformação, já o são por não o serem.

Quando a “verdade” ou a “justiça social” estão acima da livre discussão de ideias, o debate, cientifico e não só, vai morrendo aos poucos, golpeado pela ideologia, pelos interesses comerciais, políticos, etc.

Se os que são mais e têm mais voz podem silenciar os poucos que discordam (a quem até já chamam de “negacionistas”), estaremos brevemente de regresso às trevas e aos tempos de Galileu, o famoso negacionista que negava que o Sol girava em volta da Terra, apesar das “evidências” e do “consenso” em contrário.

Sem debate aberto, discussão e refutação, a Ciência morre, a democracia evapora e as consequências serão devastadoras para o Ocidente.

Hoje a Ciência é ainda uma das mais respeitadas instituições das nossas sociedades mas a maneira como dela se estão a apropriar as redes sociais, os governos, e os ideólogos, está já a minar dramaticamente a confiança das pessoas.

Nada de bom nos aguarda no fim deste caminho de censura, cancelamento e “verdades oficiais”.


José do Carmo

*O autor escreve segundo a anterior norma ortográfica.

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Latest comments

  • Totalmente de acordo.
    Cá em casa até me costumam dizer que devo estar a ficar velho por estar a dizer demasiadas vezes que parece que não aprendemos nada (nós Humanidade) com Sócrates (o filósofo grego – não confundir com outros personagens), com Giordano Bruno ou Galileu.
    Também me costumo lembrar que as maiores barbaridades, nenhuma foi cometida em nome do “Mal”. Exemplos disso mesmo foram, só para citar uns poucos, são a ordem de Simão de Montfort durante o cerco de Béziers no século XIII que perante a dificuldade de distinguir cristãos católicos de cristãos cátaros, terá dito qualquer coisa como “Matai-os todos que Deus saberá reconhecer os seus”, a “engenharia social” dos khmeres vermelhos no Camboja e o genocídio dos Tutsis no Ruanda no século XX ou a matança num concerto em Manchester no século XXI.
    Todos em nome de um bem maior

  • No mundo da informática circula uma máxima que diz : “se vires um softwarista com uma chave de fendas na mão,
    prepara-te que vai dar encrenca”
    !
    Sim, claro que há excepções, eu até era um deles, que me sentia confortável tanto no SW como no HW,
    mas ainda assim é bom estar atento!
    Ora pelo que vejo, o nosso editor de defesa, dá muitas bicadas noutros temas, aliás ainda não vi nenhum de “Defesa”!
    Talvez o título “Editor de Política Internacional” fizesse mais sentido, fica a sugestão.
    Mas falando do artigo de hoje :
    – Dá para presumir que estamos a falar de “Ciências Experimentais”, mas seria bom salientar isso, não vá algum leitor mais distraído assumir a generalização do que aqui se diz sobre “ciência” às “Ciências Formais”, o que seria um grande disparate!
    – Receio bem que Gallileu Galilei tenha dado um salto no túmulo ao ver-se confundido com os “negacionistas new wave”, que de cientistas nada têm, aliás empenham-se bastante em os atacar! Vá lá saber-se porquê!

      • Essa não concordo, mas dá para pensar. E 1+1=3?

  • *****

  • 👏👏👏👏👏👏

  • Que lufada de ar fresco, ouvir uma opinião contracorrente!
    O autor alerta para a censura (sufocante!) exercida nas redes sociais. Como escapar disso? Aderir a redes sociais emergentes como o Telegram, por exemplo? Alguém tem ideia?

  • Não é o estar velho, mas sim a maturidade e o conhecimento, infelizmente, continuamos a ser as cobaias daquilo que alguns cientistas ( a troco de de riqueza, se vendem para inventarem o caos) Inventam e sabem de mão segura que 2/3 ou mais da humanidade cai no medo fantasmagórico, depois todos pagam as favas e os “espertos” absorvem os ganhos. è o mundo em que vivemos, outra espécie de máfia, com uma droga diferente, mas que mata muita gente, pena que não mate tantos terroristas à solta, desses ninguém fala até conseguem tudo o que querem, e os desgraçados que morram à fome. Bem, estes males poderiam ser resolvidos com medidas enérgicas, pena é que isso não acontece, porque há muito interesse à volta e que move milhões, resumindo, morrem muitos e enriquecem alguns…

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