Cesário intemporal

Hoje, mais emparedados do que nunca, quer literal, quer metaforicamente, lembremos os versos com que Cesário Verde encerra a sua obra-prima “O sentimento dum ocidental”: 

“Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados. (…)
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés de fel, como um sinistro mar!”

Cesário Verde (1855-1886), talvez o mais subestimado, em vida como actualmente, dos nossos grandes poetas, viria a ser considerado por Pessoa um dos seus grandes Mestres. E contudo, em vida, a supostamente moderna “Geração de Setenta” não fez mais do que ostracizá-lo. Mais jovem e sem formação académica, apenas publicou alguns poemas dispersos em jornais, sendo alvo de acérrimas críticas. Dele ficou, por iniciativa do seu amigo Silva Pinto, a obra única e póstuma “O livro de Cesário Verde”.

Na verdade, ele não se integrava inteiramente em qualquer das escolas em voga na época. Um pouco parnasiano na perfeição formal, um pouco realista no descritivismo, muito impressionista avant la lettre, pintou, como desejava, por letras e sinais, quadros que lembram um Monet ou um Renoir.

Na transcrição acima, encontramos alguém que adivinha a dimensão da marginalidade futura e lhe atribui uma causa, a separação do Homem de um habitat natural e, sobretudo dos “largos horizontes”, símbolo de liberdade. De facto, aquele que, melhor do que qualquer outro, retratou Lisboa, não gostava do ambiente citadino e era, como escreveu Alberto Caeiro, “um camponês que andava preso em liberdade pela cidade”. Para Cesário, os “prédios sepulcrais com dimensões de montes” eram os da Baixa pombalina, onde trabalhava na loja de ferragens do pai. Além da sensação de confinamento, partilhou connosco, cidadãos do século XXI, o flagelo das epidemias, cujos efeitos descreve no poema autobiográfico “Nós”:

“Foi quando em dois verões, seguidamente,

A Febre e a Cólera andaram na cidade,

Que esta população, com um terror de lebre,

Fugiu da capital como da tempestade.” 

Segue-se a enumeração de desgraças, a “enorme mortandade”, o “dobrar dos sinos”, “as seges dos enterros”, “as lojas encerradas”… O “Nós”, a família, salva-se fugindo para o campo (em Cesário, símbolo de salubridade), não escapando, contudo, à então fatal tuberculose, que lhe leva primeiro a irmã, dor “cuja amargura nada sei que adoce”, depois o irmão, que vê surgir a morte como “um medonho muro” e parte “aflito e atónito”. O poeta sofrerá igual fim, há muito adivinhado:

“Se eu não morresse nunca! E eternamente

Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!”

Não caberia aqui uma análise da obra poética, nem tal se pretende, havendo apenas a salientar os dois aspectos porventura mais significativos para um leitor actual: a imaginação transfiguradora, quase surrealista e , sobretudo, a enorme compaixão do poeta pelo sofrimento humano. Encontramos ambas as características em “Cristalizações”, retratando a dura vida dos calceteiros:

“Povo! No pano cru rasgado das camisas

Uma bandeira penso que transluz

Com ela sofres, bebes, agonizas:

Listrões de vinho lançam-lhe divisas,

E os suspensórios traçam- lhe uma cruz!”

Seria infindável e a lista dos tipos sociais, cujo lado trágico Cesário salienta. Contudo, as varinas ocupam nela um papel essencial, o da mulher sujeita a trabalho demasiado pesado para a condição que se lhe atribui:

“Vêm sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras.

E alguma, à cabeça, embalam nas canastras.

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas,

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,

E o peixe podre gera os focos de infecção!”

A miséria (dir-se-ia hoje, a crise…) não poupa os eruditos e é assim que:

“Dó da miséria! Compaixão de mim!…”

E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,

Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,

Meu velho professor nas aulas de Latim!””

Segundo António Damásio, a melhor maneira de aprender psicologia é a leitura das tragédias de Shakespeare. Eu acrescentaria toda a grande poesia, capaz de trazer até nós uma visão psicológica, mas também sociológica da condição humana. Cesário Verde edifica, como poucos, essa possibilidade. As suas personagens têm a marca da intemporalidade. Ele, o poeta, traz até nós a marca da compaixão, da atenção ao outro. Não é pouca coisa, nos tempos que correm.


Isabel Pecegueiro

* A autora usa a norma ortográfica anterior.

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Latest comments

  • Pela análise da Isabel, só posso ter grande simpatia pelo Cesário Verde, quanto mais não seja pelo perfil desalinhado e provinciano como eu. Só não gostei que usasse o Pessoa como bitola, pois por esse funcionário público, típico urbano ébrio, não tenho qualquer simpatia, muito menos quando o marketing o atira para o top!
    Será que no tempo do Cesário Verde, também apareceram uns totós a assumir o papel dos “contras”? Talvez não, isto dos negacionismos é invenção recente! No sec XIV o estado da arte da medicina ainda não permitia os luxos do sec XXI, onde pessoas ditas
    sobredotadas se dão ao luxo de negarem a ciência, a eficácia das terapias, a vantagem das vacinas só porque é chique !

  • Pela análise da Isabel, só posso ter grande simpatia pelo Cesário Verde, quanto mais não seja pelo perfil desalinhado e provinciano como eu. Só não gostei que usasse o Pessoa como bitola, pois por esse funcionário público, típico urbano ébrio, não tenho qualquer simpatia, muito menos quando o marketing o atira para o top!
    Será que no tempo do Cesário Verde, também apareceram uns totós a assumir o papel dos “contras”? Talvez não, isto dos negacionismos é invenção recente! No sec XIV o estado da arte da medicina ainda não permitia os luxos do sec XXI, onde pessoas ditas
    sobredotadas se dão ao luxo de negarem a ciência, a eficácia das terapias, a vantagem das vacinas só porque é chique !

  • Obrigada pelo texto, fruto de reflexão e saber. Merecia um espaço dedicado, numa secção de “Cultura”, embora corresse o risco de não ser lido e apreciado. Com os tempos que correm… O tempo de Cesário foi difícil para Portugal. O próprio rei, que visitava pessoalmente os hospitais, morreu contagiado.
    Gostei também da frase de “Caeiro”, diz tudo, com poucas palavras.
    A poesia com P maiúsculo tem grande força expressiva!

    • Obrigada pelo gentil comentário ☺️.

  • Sempre tive grande apreço por todos os meus professores e sempre os vi como pessoas inteligentes e simultaneamente humildes ao ponto de desempenharem essa tão nobre tarefa de ensinar. Aqui se prova que (alguns) professores, além de docentes são intelectuais, na melhor aceção da palavra. São pessoas dotadas de conhecimento teórico e prático, espírito crítico e olhar arguto capaz de ler e interpretar a realidade que os rodeia. Bom texto, professora, obrigada por me continuar a ensinar.

    • De professora para professora, muito obrigada, querida Ana, por me fazer sentir que a minha vida profissional valeu a pena. Estou certa de que os seus alunos pensarão, com razão, o mesmo de si. Beijinhos 😘😘

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