O Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa (abaixo designado por CIEASC – ICP), de fevereiro de 2023, tem uma importância crucial na reabilitação e proteção das vítimas, na compensação pelos danos físicos, psicológicos e sociais sofridos, na limpeza e prevenção da Igreja face à chaga da pedofilia praticada, na perseguição judicial dos abusadores e na dissuasão de novos abusos.
O relatório permitirá, ainda, passada esta fase de choque, espanto, catarse e expiação dos pecados pelo pedido do perdão das vítimas, a penitência e a oração, a recuperação da imagem da Igreja. Mas, para tanto – e tanto é! – é urgente que seja vencida a resistência dos bispos que se têm recusado, entravado ou adiado, a denúncia dos alegados padres (e colaboradores leigos) abusadores ao Ministério Público e o afastamento preventivo de funções e proibição preventiva de exercício do ministério sacerdotal (ou a colaboração, no caso de leigos). Quanto mais demorar essa responsabilização judicial e proibição preventiva do exercício do ministério sacerdotal, como acontece infelizmente com os bispos de Lisboa e Porto relativamente aos clérigos denunciados, pior. A morosidade do processo canónico não pode desculpar a tomada da decisão preventiva, muito menos a participação às autoridades judiciais. E só o clamor popular pode conseguir que todos os bispos se sintam obrigados a decidirem rapidamente essa proibição do exercício do sacerdócio. Como se diz na Bíblia, “quem tiver ouvidos, oiça!”
No caso dos bispos, a negligência, o encobrimento, a omissão ilegal do dever de denúncia dos abusos sexuais praticados por padres sobre crianças e adultos vulneráveis, a proteção dos abusadores, a escolha do lado dos alegados abusadores em vez das vítimas, o medo da vingança dos abusadores, o receio do escândalo público de publicação de outros abusadores e o pavor da exposição da prática homossexual ou heterossexual de outros padres e, pior ainda, de prelados, não são admissíveis do ponto de vista legal, social e moral. E os bispos que negligenciaram e abafaram os abusos, faltando ao dever legal e moral de denúncia às autoridades judiciais do país e canónicas, tolerando a manutenção do padre (ou colaborador leigo) na paróquia ou ofício, ou os exfiltraram para outro ofício, paróquia ou diocese, os deixaram sem ofício sem processo canónico, ou os enviaram para o estrangeiro (ou deixaram de informar os ordinários do novo lugar para onde estes recuaram), conformaram-se, desde logo, com o possível resultado funesto da pedofilia praticada pelos abusadores sobre outras crianças. Esses prelados têm de ser também responsabilizados judicialmente por essa cumplicidade. Internamente, na Igreja, além do indispensável processo canónico, é necessário o seu afastamento do ofício episcopal diocesano, e prevenido qualquer promoção à titularidade de qualquer diocese, no caso dos auxiliares.
A condição de bispo não confere qualquer imunidade em caso de cumplicidade, ou até o cometimento, de abusos. Note-se que em França, em 7-1-2022, a conferência episcopal reconheceu que onze bispos (seis dos quais no ativo), um dos quais cardeal, foram denunciados às autoridades judiciais ou aberto processo canónico (interno, na Igreja), por terem exercido, eles próprios, abusos sexuais sobre menores.
Portanto, o trabalho da CIEASC na recolha, tratamento, análise e redação, bem como o relatório produzido, seja na versão pública, seja na versão com os nomes dos alegados abusadores e detalhes das circunstâncias de lugar e tempo dos abusos, entregue aos bispos portugueses (e espera-se que também enviado para a Santa Sé) e Ministério Público, têm um mérito notabilíssimo que deve ser reconhecido e louvado por toda a sociedade, e especialmente pelos católicos. Muito gratos!
O valor admirável desse trabalho, e do relatório, não deve ser desmerecido pela filiação institucional, ideologia ou crença dos seus autores. Em nossa opinião, o relatório estaria melhor no seguinte:
- apresentação da tabela completa com as vítimas por abusador, evitando-se a estimativa de 4.815 potenciais vítimas, que resultam de 512 testemunhos individuais acrescidos de outras 4.303 vítimas (p. 200) determinado com base numa série de correspondências numéricas para expressões semânticas (quadro da página 201).
- publicação do número de padres (e leigos colaboradores) por diocese, no ativo e falecidos e datas aproximadas dos abusos (quando tiverem sido indicadas)
- publicação dos nomes dos alegados abusadores sobre os quais existam indícios fortes do cometimento dos abusos, protegendo os nomes das vítimas abusadas. Note-se que a norma do processo-crime, excluindo o nome das vítimas vulneráveis, é a publicidade. Porque o objetivo é dar voz ao silêncio e não silêncio à voz. Esta publicidade provocaria um efeito dissuasório significativo.
- não deveria conter uma avaliação da Igreja Católica e da sua doutrina porque isso excederia o seu objeto e é contraproducente para a sua eficácia, facilitando a acusação de viés ideológico que lhe diminui o alcance;
- deveria evitar a perspetiva politicamente correta de que não há qualquer relação entre homossexualidade e abuso sexual de menores, porque a sobrerrepresentação de pedófilos entre os homossexuais foi determinada em diversos estudos (em valores absolutos há mais pedófilos que abusam de crianças de sexo diferente, mas é bastante maior a percentagem de pedófilos entre os que abusam de menores do mesmo sexo). Esta maior preponderância não significa que ser homossexual é ser pedófilo, significa apenas que existe uma maior percentagem de pedófilos entre homossexuais. A páginas 75-76 do relatório, os autores escrevem:
“Sabe-se que a maior parte dos abusadores de crianças são, na sua forma socialmente assumida e ainda na sua estruturação emocional, heterossexuais, muitos deles tendo relações com adultos de sexo oposto ou sendo pais de crianças. Por outro lado, a quase totalidade dos homossexuais vive a sua vida emocional e afetiva com pessoas de faixas etárias superiores a 18 anos de idade e orientação idêntica, sem que sequer se constitua esta mesma questão de abuso. Embora esta questão esteja hoje absolutamente clarificada do ponto de vista científico, ela é ainda objeto de vulgar confusão entre vários estratos das sociedades, incluindo em posições que persistem como um dogma dentro da própria Igreja que, por exemplo, nega casamentos entre pessoas do mesmo sexo ou a confissão e a comunhão a quem não tenha assumido orientação heterossexual.”
- O quadro abaixo da “Distribuição do número de abusos por idade e género da pessoa vítima”, na página 174, elaborado com os dados do inquérito online da Comissão Independente não é, todavia, comentado. Aí se nota uma ligeira supremacia no número de abusos entre os 4 e os 9 anos de meninas vítimas, mas depois dos 10 anos é maior, e mais significativo, o número de abusos de menores do sexo masculino. Estes dados podem ter como causa uma sobrerrepresentação da homossexualidade nos padres de gerações anteriores, na época histórica anterior, em que a homossexualidade não era socialmente aceite e até o celibato era motivo de desconfiança sobre a orientação do indivíduo. E ainda que nos seminários exista o crivo de prevenir vocações espúrias, também existia uma espécie de cooptação homossexual nalguns seminários e épocas, conforme o Inconveniente tem apresentado na série de artigos que dedicou aos abusos.
Porém, repito, não é legítimo desvalorizar o trabalho da Comissão Independente, os dados recolhidos e o próprio relatório, com a justificação de viés ideológico, filiação institucional, crença (ou ateísmo ou agnosticismo) dos seus autores e colaboradores. Essa desvalorização prejudica ainda a integração dos dados, análise e conclusões do relatório e a tomada de decisões corretivas, repressivas e preventivas, nomeadamente na formação dos seminários e na conduta do episcopado cuja responsabilidade é ainda maior.
A Igreja é todo o povo e não apenas padres, bispos e vocações consagradas. É ao povo que os bispos têm de servir e não aos subordinados padres e pessoas de vocações consagradas: se são cúmplices, “por palavras, atos e omissões”, nos abusos ou têm medo de exercer a autoridade, devem afastar-se ou ser afastados. A falta de coragem em tomar as decisões de afastamento preventivo dos padres (pessoas de vocações consagradas e leigos colaboradores) dos ofícios e a proibição preventiva do exercício do sacerdócio é incompreensível para os cristãos e terrível para o ministério da Igreja.
António Balbino Caldeira
Diretor
Carlos2 / Março 19, 2023
“Porém, repito, não é legítimo desvalorizar o trabalho da Comissão Independente, os dados recolhidos e o próprio relatório, com a justificação de viés ideológico, filiação institucional, crença (ou ateísmo ou agnosticismo) dos seus autores e colaboradores.”
Será? Duas pessoas ao lado uma da outra vêm um acidente. Quando separadamente o vão descrever há casos que parece que viram acidentes diferentes. E quanto mais tempo passa pior.
Relatórios apresentam-se crús. Quem os lê interpreta-os correctamente ou erradamente ou ainda no leque que vai de um ao outro. Estar a “orientar-me” na minha conclusão, leva-me a pensar porquê e quantas mais “orientações” terá o relatório.
Pegando num dos seus pontos.
“não deveria conter uma avaliação da Igreja Católica e da sua doutrina porque isso excederia o seu objeto…”
Ou será porque o objectivo inconfessado é esse e o resto serve de disfarse?
Projecções ficam para quem se dedica às estatísticas. Sentei-me à mesa com um amigo, ele já tinha almoçado, eu comi um frango. Estatísticamente cada um comeu 1/2 frango. A verdade é que eu comi um frango.
Há três espécies de mentiras: as mentiras, as mentiras sagradas e as estatísticas.
– Mark Twain
Vamos ver o que o Ministério Público vai fazer.
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