Aborto em Portugal: fetos são tratados como lixo e usados para produzir energia

Os fetos e embriões abortados no aborto cirúrgico provocado e aborto espontâneo são tratados como lixo em Portugal e objeto de incineração para produção de energia elétrica e térmica.

Referimo-nos neste artigo aos fetos e embriões do aborto cirúrgico provocado, em hospitais e clínicas de aborto, de acordo com a lei 16/2007, de 17 de abril, que alterou o art. 142.º do Código Penal – aborto cirúrgico provocado “por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez” e quando “houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo” – e o aborto espontâneo, quando decorra em ambiente hospitalar.

O aborto medicamentoso (ver Circular Normativa 9/SR, de 21-6-2007, da Direção-Geral da Saúde) realizado por ingestão dos fármacos mifepristone/misoprostol fornecidos em centros de saúde, hospitais e clínicas, ocorre vulgarmente em casa, a não ser quando as dores e hemorragias levam à urgência do hospital, e a mulher desfaz-se do embrião quando não é expulso diretamente na sanita. O mesmo acontece no aborto espontâneo precoce, quando a mulher ou a família não recorre à inumação (enterro) ou cremação.

Incluídos no Grupo IV de resíduos hospitalares, conforme o Despacho 242/96, de 13 de agosto, a legislação portuguesa prescreve que os fetos e embriões abortados em hospitais e clínicas de aborto, sejam colocados com os demais resíduos desse grupo em contentores de lixo, recolhidos e transportados por empresas contratualizadas para centrais de incineração de resíduos hospitalares e industriais perigosos onde são incinerados. De acordo com o ponto 2.4 desse Despacho 242/96, os resíduos hospitalares do Grupo IV são: além dos fetos e embriões, as placentas e peças anatómicas identificáveis; os cadáveres de animais de experiência laboratorial; agulhas, catéteres e todo o material invasivo; citostáticos (fármacos de quimioterapia) e todo o material utilizado na sua manipulação e administração.

Os contentores reutilizáveis (de 60 litros) no sistema contratualizado com o SUCH (Serviço de Utilização Comum dos Hospitais) para armazenamento dos resíduos hospitalares do grupo IV, e portanto utilizados para os fetos e embriões abortados, são os seguintes:

Os sacos empregados para a colocação de fetos e embriões abortados (e demais resíduos hospitalares do Grupo IV) também fornecidos ao abrigo do acordo contratualizado com o SUCH, são os seguintes:

Na prática, segundo informação do diretor técnico do Centro Integrado de Valorização e Tratamento de Resíduos Hospitalares e Industriais (CIVTRHI) da Somos Ambiente – A.C.E., eng. Vítor Arroteia, contactado pelo IИ em 22-6-2022, normalmente os resíduos do Grupo IV são incinerados em conjunto com os resíduos hospitalares do Grupo III, embora também possam ter outro tratamento.

Os resíduos hospitalares do Grupo III são designados “resíduos hospitalares de risco biológico” (Despacho 242/96, ponto 2.3) e incluem:

a) Todos os resíduos provenientes de quartos ou enfermarias de doentes infecciosos ou suspeitos, de unidades de hemodiálise, de blocos operatórios, de salas de tratamento, de salas de autópsia e de anatomia patológica, de patologia clínica e de laboratórios de investigação, com exceção dos do Grupo IV;

b) Todo o material utilizado em diálise;

c) Peças anatómicas não identificáveis;

d) Resíduos que resultam da administração de sangue e derivados;

e) Sistemas utilizados na administração de soros e medicamentos, com exceção dos do Grupo IV;

f) Sacos coletores de fluidos orgânicos e respetivos sistemas;

g) Material ortopédico: talas, gessos e ligaduras gessadas contaminados ou com vestígios de sangue; material de prótese retirado a doentes;

h) Fraldas e resguardos descartáveis contaminados ou com vestígios de sangue;

i) Material de proteção individual utilizado em cuidados de saúde e serviços de apoio geral em que haja contacto com produtos contaminados (como luvas, máscaras, aventais e outros).

Conforme o diretor técnico do CIVTRHI/Somos Ambiente, quando chegam às suas instalações, os sacos de resíduos hospitalares não podem ser abertos, indo diretamente para a incineradora. Desta maneira, os fetos abortados no aborto cirúrgico são incinerados juntamente com as seringas e cânulas usadas para a sua morte e outros materiais (com exceção dos instrumentos cirúrgicos para realização do aborto, que são lavados e descontaminados para reutilização). Por outras palavras, a lei portuguesa admite que se coloque no mesmo saco do lixo a vítima humana e a arma que lhe deu a morte e sejam queimados em conjunto.

Mais ainda, como são normalmente incinerados em conjunto os resíduos hospitalares dos Grupos III e IV (com exceção das ocasiões em que os do Grupo III têm tratamento alternativo), os fetos e embriões são incinerados na mesma fornada com sacos de fezes e de urina e fraldas, além de outros materiais repugnantes, como “cadáveres de animais de experiência laboratorial” (ex: ratos).

O sistema de tratamento dos resíduos hospitalares, contratualizado com o SUCH, em Portugal, pode entender-se no diagrama seguinte:

De acordo com este sistema, os fetos e embriões abortados são objeto de incineração obrigatória em centros de tratamento de resíduos, como o CIVTRHI (Centro Integrado de Valorização e Tratamento de Resíduos Hospitalares e Industriais) do grupo Ambipombal, e no CIGR (Centro Integrado de Gestão de Resíduos) da Ambimed, ambos na Chamusca.

No CIVTRHI/Somos Ambiente, a incineração utiliza “tecnologia de pirólise/gaseificação em forno estático, constituído por duas câmaras de combustão, primária e secundária”. As escórias resultantes da queima são depositadas em aterro sanitário controlado e as cinzas volantes enviadas para tratamento no CIRVER-Ecodeal, situado também na Chamusca, e localizado proximamente no aterro de resíduos industriais perigosos. O CIVTRHI/Somos Ambiente também realiza incineração de resíduos da indústria farmacêutica.

Já o CIGR/Ambimed pertence à multinacional norte-americana Stericycle e a sua incineradora também queima resíduos hospitalares do Grupo IV. Apesar das tentativas, não foi possível ao nosso jornal obter esclarecimentos desta empresa.

A Portaria 43/2011, de 20 de janeiro, inscreve as “questões culturais e éticas”, no seu ponto 2, como condicionante no tratamento dos resíduos, a que também alude no Quadro V. E no ponto 4.4, indica que “os processos de tratamento dos resíduos hospitalares têm como objetivo”, entre outros, “minimizar o impacte visual destes resíduos tornando-os irreconhecíveis, nomeadamente por razões éticas”, que consiste na “capacidade de descaracterização visual dos resíduos anatómicos” (referindo Prüss et al., 1999; Muhlich, 2000; Infotox, 2009).

A semântica abstrata, e os eufemismos, de utilização comum na área do aborto, parece ser aqui usada também para incluir os fetos, inteiros ou desmembrados em cabeças, braços, pernas, tronco e órgãos, além de órgãos e membros amputados no caso de acidentes, diabetes e outras doenças.

No Quadro X da referida Portaria 43/2011, indica-se que “os resíduos de ‘peças anatómicas e placentas’ devem ser tratados por recurso à incineração, nomeadamente por considerações éticas e culturais (HCWH 2004)” – aparentemente, a expressão legal abstrata “peças anatómicas” inclui fetos e embriões, desmembrados ou inteiros… Por conseguinte, neste assunto, a preocupação governamental estará concentrada em “minimizar o impacto visual” dos fetos e embriões abortados e não na sua dignidade humana, sejam eles resultantes do aborto cirúrgico provocado, extraídos inteiros ou desmembrados pela aspiração, e do aborto espontâneo. A legislação subsequente prevista nunca foi publicada.

Na Portaria 43/2011 (Quadro VI), menciona-se que a “possibilidade de cremação e de inumação [enterro]” dos fetos mortos, como exceção à incineração obrigatória estipulada no Despacho 242/96, já estava prevista no Decreto-Lei 411/98, de 30 de dezembro. Contudo, tal possibilidade depende de requerimento (art. 3.º e 4.º), e não é clara sobre o caso específico dos fetos abortados. Em qualquer caso, a cremação e enterro só se verificarão se for requerida por quem tenha legitimidade para o ato, nomeadamente familiares.

Relativamente aos fetos e embriões abortados em que não seja requerida pela mãe, pai (ou outro familiar), a cremação ou enterro (aplicando-se as taxas cobradas pelas câmaras municipais), ou não sejam doados para investigação científica, o destino é a “incineração obrigatória” (ponto 2.4 do Despacho 242/96) nas incineradoras de resíduos hospitalares.

Uma última questão, é a do aproveitamento energético da incineração dos fetos e dos embriões abortados.

Ainda segundo o diretor do CIVTRHI/Somos Ambiente Vítor Arroteia, é produzida eletricidade (a 100%) no processo de incineração e ainda aproveitada a energia térmica libertada no processo para a higienização dos contentores. Além do CIRVER-Ecodeal, onde se queimam a 1.200º as cinzas volantes (contendo metais pesados), que procedem da incineração dos resíduos hospitalares do Grupo IV no CIVTRHI/Somos Ambiente e no CIGR/Ambimed.

Ora, como as incineradoras CIVTRHI/Somos Ambiente e CIGR/Ambimed produzem energia a partir dos “resíduos hospitalares” e outros, então, os fetos e embriões abortados são usados indistintamente para a produção de energia elétrica e térmica.

The Center for Bio-Ethical Reform, apresentada em The Voyage of Life, Charlotte Lozier Institute, consultado em 24-6-2022.

Feto de 24 semanas abortado – Center for Bio-Ethical Reform – ver ainda “What to expect – 24 weeks pregnant

A questão em desenvolvimento neste artigo não é colocada no tamanho dos fetos e embriões, tão pouco nos motivos que levaram ao aborto, mas na dignidade humana que ali jaz, tal como entendida por muitos pais que recorrem à procriação medicamente assistida e têm grande dificuldade em tomar a decisão de desfazer-se dos embriões excedentários da fertilização in vitro, ainda que o destino possa ser a doação para investigação científica.

O avanço científico no conhecimento da evolução e estádios de desenvolvimento do embrião e do feto torna o desprezo destes seres humanos menos aceitável socialmente, a não ser em franjas radicais da sociedade. Veja-se, por exemplo, o artigo “Science is giving the pro-life movement a boost” (A ciência está a dar um empurrão ao movimento pró-vida), de Emma Green, de 19-1-2018, na revista liberal de esquerda The Atlantic.

A produção de energia nos crematórios a partir dos corpos gaseados, de judeus e grupos étnicos e sociais, é considerada um dos factos mais aberrantes e desumanos da história da humanidade, realizados em campos de concentração nazi entre 1940 e 1945. Em Portugal, em vez da sensibilização pela dignidade do enterro ou cremação – como já sucede no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte – os fetos e embriões abortados são tratados como lixo, sujeitos à “incineração obrigatória” em conjunto com outros resíduos hospitalares, servindo ainda para a produção de energia elétrica e térmica.

Também não está em causa a quantidade de energia (elétrica e térmica) produzida com esses fetos e embriões, mas o facto de ser produzida a partir deles. Os fetos e os embriões têm uma condição diferente do que fraldas, fezes e urina. Têm, em Portugal, o mesmo tratamento.

Em 2021, foram realizados em Portugal 3.675 abortos provocados cirúrgicos (3.607 nas clínicas privadas de aborto e 68 nos hospitais públicos), segundo consta no “Relatório de análise preliminar dos registos das interrupções da gravidez” sobre os anos 2018 a 2021, da Direção-Geral da Saúde, que o IИ já teve oportunidade de publicar e analisar. Não é conhecido o número de fetos e embriões de aborto espontâneo realizados em hospitais e clínicas, cujas famílias não requereram entrega para enterro e cremação, e que têm, portanto, o mesmo destino daqueles do aborto provocado.


António Balbino Caldeira

* As imagens dos contentores e sacos usados para depósito do Grupo IV de resíduos hospitalares e o diagrama sobre o tratamento de resíduos hospitalares são de Gonçalves, Fátima (novembro de 2017). Incineração de Resíduos Hospitalares – SUCH. Seminário Resíduos Hospitalares. Organizado pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos dos Açores e Direção Regional de Saúde dos Açores.

** Este artigo foi atualizado às 10:49 de 29-6-2022.

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