A importância de ser Ernesto

“I’ve now realised for the first time in my life the vital importance of Being Earnest.”

Oscar Wilde (1895). The importance of being earnest: a trivial comedy for serious people. III Acto, conclusão da peça.

Augusto Ernesto Santos Silva, ora presidente da Assembleia da República e segunda figura do Estado, depois de ter sido ministro de várias pastas, tem um percurso público, académico e de crónica jornalística, que importa descobrir.

Licenciado em História, na Faculdade de Letras do Porto, torna-se professor da Faculdade de Economia do Porto, na área das Ciências Sociais, nomeadamente a Metodologia.

Portuense bairrista, com penoso complexo de inferioridade face ao elitismo da capital, que se nota nas crónicas ácidas e nas parcerias políticas locais, veio fazer um doutoramento no ISCTE, em Lisboa, em 1992, obtendo a bênção necessária da escola do regime socialista para subir a mais altos voos.

O seu bairrismo político, desde a fileira de Daniel Bessa, ao entendimento com os políticos “do Norte” (leia-se, Porto), que explica certas posições e apoios, é também uma base permanente de sustentação.

A contradição ideológica e a duplicidade política parecem ser as marcas salientes do seu trajeto público.

Contradição ideológica entre as influências que ressaltam repetidamente dos trabalhos académicos — Marx, Bourdieu, Paulo Freire, Boaventura Sousa Santos, Michel Foucault — e a prática política. Desde logo, deflete do marxismo histórico para o marxismo cultural pós-moderno.

No livro, de que foi editor com José Madureira Pinto, sobre Metodologia das Ciências Sociais, em 1986, escreveu com o seu colega, na página 15 do capítulo de Introdução:

“Marx desconhecia-se a si próprio como sociólogo – mas, de facto, foi colocando-se do ponto de vista relacional e globalizante que ele transformou a história e a economia, insistindo em que o que importa é analisar as relações sociais entre os homens a todos os níveis, económico, político, ideológico”.

Silva, Augusto Santos e Pinto, José Madureira (eds.) (1986). Metodologia das Ciências Sociais. Introdução: uma visão global sobre as Ciências Sociais. Edições Afrontamento.


Ainda na mesma obra coletiva, na página 41, o professor Ernesto socorria-se de Bourdieu (Questions de Sociologie, 1980) para escoriar o individualismo. Nessa esteira, à frente, página 47, alarga-se:

“E o que é o ‘individualismo’, senão a imposição como único quadro possível de referência, da ideologia que o Ocidente industrializado consagrou?”.

A chaga do marxismo continua viva na contestação do predomínio da ideologia individualista do Ocidente em contraponto ao coletivismo soviético pré-perestroika.

Outra inspiração é o brasileiro Paulo Freire, influenciado pela práxis marxista, responsável pela libertação (desconstrução) construtivista do ensino, cuja “Pedagogia do Oprimido” (1970), louva numa crónica, “Ninguém pode dizer a palavra sozinho”, no Público, de 8-5-1997, relembrando os tempos utópicos de professor do liceu.

Noutro dos seus intragáveis e pomposos capítulos filosóficos disserta sobre Foucault (Surveiller et punir, 197, a microfísica do poder, o poder-saber e o poder-disciplina – Silva, A.S. et al. (2000). A política: ensaios de definição. A ação política: um ensaio de política e perspectiva. Ediciones Sequitur). E acrescenta-lhe uma exegese sobre Boaventura Sousa Santos (Toward a new common sense: law, science and politics in the paradigmatic transition, 1995, Routledge) sobre “os modos de produção do ‘poder social’ no mundo capitalista contemporâneo”. O capitalismo é um dos seus tormentos – como a Igreja, como veremos adiante.

Num artigo de análise da integração de Portugal nas Comunidades Europeias, em 1994, p. 150, desce à perspetiva de Giddens (Sociology, 1989) sobre a globalização, para logo lhe sobrepor o mestre Boaventura (Onze teses por ocasião de mais uma descoberta de Portugal, 1990), que estende numa das usuais diatribes hermenêuticas ininteligíveis que permeiam os seus textos académicos:

“Mas se tal reordenamento vai no sentido de movimentos de desterrritorialização, a desterritorialização é também uma reterritorialização” (sic).

Silva. A.S. (1994). Tradição, modernidade e desenvolvimento: Portugal na integração europeia. Revista crítica de ciências sociais 39, 5.

Ainda no mesmo artigo, p. 157, afronta a Igreja Católica no seu cavalo de batalha, de ferro marxista, coberto com o manto pós-moderno (o mesmo combate, outra estratégia):

“A Igreja organiza, desde os tempos anteriores à fundação da nacionalidade, o espaço social português. Tal facto, associado à forte prevalência entre nós de modelos articulados à Contra-Reforma, tem dificultado a afirmação de formas culturais laicas”.

Ernesto, alegadamente religioso, mas não católico, não consegue descalçar o sapato marxista, para tirar a pedra católica que lhe incomoda a modernidade. Da prosa académica acaciana descai frequentemente nas crónicas para o cuspo repugnante do escárnio, como quando goza com o aborto e os católicos:

“Os portugueses do Portugal perfeito, os portugueses perfeitos, são bons chefes de família, escandalizam-se com o aborto, imploram não mates o Zezinho (…) porque são bons católicos”.

Público, 20-2-1997.

Tem um início revolucionário precoce no trotskismo, e depois do 25 de Abril de 1974, aos 18 anos, na Liga Comunista Internacionalista (LCI). Este grupo, na qual também militava Francisco Louçã, que ligou-se à UDP, que fundiu no PSR, em 1978, e mais tarde convergindo no Bloco de Esquerda que reuniu trotskistas e ex-maoístas, como Fernando Rosas.

Na biografia na Wikipédia, não indica o ano em que abandonou a LCI, nem se chegou a filiar-se na UDP, muito menos o faz no seu CV ministerial que, todavia, agiganta a sua obra académica modesta. Entretanto, Ernesto descolava do trotskismo e aproximava-se do socialismo, através do ex-leninista MES.

O posicionamento político foi rodando do apoio ao revolucionário Otelo, em 1976, para Ramalho Eanes, em 1980, e Maria de Lourdes Pintasilgo, em 1985.

Aderiu ao PS em 1990, mas opunha-se a Mário Soares, que desprezava, preferindo Sampaio e depois Guterres. No Partido Socialista, derivou do guterrismo para indefetível de José Sócrates, sacrificando a sua ironia afável de professor apagado ao estilo nojento contra o “jornalismo de sarjeta” (em entrevista ao Correio da Manhã, em 2007) que expunha a corrupção do líder, e trauliteiro de “malhar na direita” (5-2-2009). Contudo, Ernesto via, ouvia e lia, e como na cantata da conterrânea Sophia de Mello Breyner, não deveria ignorar. Não obstante, convinha-lhe não só fechar os olhos e os ouvidos, mas ainda defender a corrupção de Sócrates que, após a prisão deste, protestou desconhecer!…

Numa crónica na TSF, em 20-3-1998, expunha-se: “hoje quero aplaudir o ministro José Sócrates”, conjurando que “bem precisa do nosso apoio”. E concluía:

“o que é preciso não é parar o ministro José Sócrates. Pelo contrário, é torcer para que o seu exemplo se estenda aos outros ministérios”.

Silva, A.S. (1998). Crónicas na TSF-Rádio Jornalsetembro de 1997 a julho de 1998. ISFEP.

A incoerência é romantizada na literatura autobiográfica de justificação numa crónica intitulada “Da outra margem”, dedicada ao seu amigo José Valente, no Público em 17-8-1995, como desistência, aprendizagem, compreensão, crescimento e porque, “de algum modo, nos tornámos mais radicais, no sentido justamente de Marx”. E atreveu-se, justificando o passado, e, premonitório, o futuro, a dizer que “há uma coerência no nosso caminhar”. Porém, não havia coerência nenhuma no percurso ideológico, como não haveria no caminho político. O “lugar-outro”, que reclama nessa crónica auto-hagiográfica, não é outro que o mesmo lugar sistémico do poder opressivo, do tacho e das mordomias de função.

Ernesto também açoitou protagonistas políticos atuais.

Marcelo Rebelo de Sousa foi um dos alvos do seu riso escarninho impresso. Em 16-1-1997, no Público, numa crónica intitulada “Marcelo João”, batizou-o de “anti-fêveras e donos da bola”, “deglutindo, com riso fingido, para TV ver, as famosas fêveras” e rematou com um chapéu: “no maior partido da oposição, quem hoje brilha é um actor de vaudeville, chamado… Marcelo João”. E na TSF, em 24-4-1998, fustigou-o:

“é ridículo chamar reacionários aos outros quando se é tão profundamente reacionário no que realmente importa à política económica e social”.

Hoje, Ernesto quereria apagar os epítetos que atirou sobre Marcelo: o “profundamente reacionário”, de “riso fingido”, o “actor de vaudeville”…

Ainda na mesma crónica de 16 de janeiro de 1997, no Público, objurga “a presteza rasteira do deputado Marques Mendes e a folia populista do vice-presidente Jardim”.

A sinuosidade ideológica desemboca na duplicidade política, que parece ser do seu caráter. As suas crónicas no Jornal de Notícias, Público e TSF, são traçadas por um pau de dois bicos com que tanto acertam no cravo como batem na ferradura. Ernesto protege-se numa posição “nim”, que lhe tem permitido flutuar como rolha nas ondas da política.

Veja-se a sua crónica no Público, em 20-3-1997, “Lamento por nós e João Garcia” sobre o caso de uma família cigana acampada em Vila Verde, envolvida em conflito com a população e câmara municipal, que queriam a sua expulsão, e que se veio a confirmar estar envolvida no tráfico de droga:

“Também me oponho à desculpabilização sistemática dos que cometem actos legal ou moralmente condenáveis em nome da sua precariedade social ou da sua diferença étnica”.

Racismo é o dos outros…

E assim, sinuoso e dúplice, chega ao segundo lugar do Estado. Mas, do que se vê, Ernesto ainda não incorporou a importância de ser honesto.


António Balbino Caldeira

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Latest comment

  • Excelente artigo, Senhor Professor, hoje é necessário desmascarar estes personagens, porque são os actores da ditadura socialista que afunda o país na miséria.

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