
A recente e gelada reunião bilateral entre a China e os EUA, no Alasca, foi um bom retrato de que a era da harmonia já lá vai e não volta. Pelo menos, nos termos que conviriam ao Ocidente.
O que aí vem, e que a hostilidade aberta da administração norte-americana anterior já sinalizava, é uma China confiante, nos seus objectivos, estratégias, meios e, sobretudo, no seu poder.
É essa confiança que leva à arrogância que se começa a notar, no engrossar da voz, na exibição do músculo militar, na ameaça aberta a quem se coloca, por palavras, actos ou omissões, no caminho do dragão em direcção ao seu grande objectivo: o regresso ao antigo e grandioso estatuto de Império do Meio, um degrau acima de todos os outros povos do mundo, os bárbaros que devem fazer ritualmente o kowtow, o acto de submissão dos vassalos ao soberano.
A China, oficialmente numa “Nova Era”, nas palavras de Xi Jinping, pretende, até 2050, o “grande rejuvenescimento da nação chinesa”, o que significa o “regresso a uma posição de poder, prosperidade e liderança” no tabuleiro internacional (DN, 20-3-2021). Isso implica competição estratégica com qualquer poder que se atravesse no seu caminho e a prossecução determinada do controlo social e da modernidade cientifica, tecnológica, industrial, militar, etc.
Alcançar o estatuto perdido nos dois séculos anteriores, no confronto com o Ocidente, implica também, para a liderança comunista, reunificar completamente o território que considera seu, nomeadamente Taiwan.
A estratégia chinesa é paciente e abrange todos os domínios do poder, a começar pela reformulação da actual ordem internacional, considerada incompatível com o sistema socialista e intoleravelmente limitadora dos seus fins estratégicos, da sua soberania, da sua segurança e dos seus interesses. Como disse Xi Jinping, num discurso no termo do seu primeiro mandato mas só tornado público em março de 2019: “construir um socialismo superior ao capitalismo e lançar as fundações de um futuro onde teremos a iniciativa e a posição dominante (ver Daniel Tobin, CSIS, 8-5-2020).
Uma das prioridades tem sido o desenvolvimento económico, porque só ele pode gerar os recursos necessários para prosseguir sinergicamente os objectivos de modernização, incluindo as bases científica, tecnológica, industrial, militar, social, económica, etc. O que significa que, ao contrário das sociedades abertas, não há uma linha divisória clara entre o que é civil e o que é militar.
Basicamente, a China é um exército em que tudo obedece ao comandante, com tudo o que de vantajoso ou desvantajoso isso implica. E sim, há algumas desvantagens militares, a começar pela comprovada ineficiência dos fluxos de informação quase exclusivamente top-down, em situações fluídas e complexas, como as que ocorrem nas batalhas e guerras modernas.
O objectivo militar está definido com alguma clareza:
- Até 2050, possuir umas Forças Armadas de “classe mundial”, nas exactas palavras de Xi Jinping em 2017 – cf. Fravel, M. T. (2020), China’s “World-Class Military” ambitions: origins and implications, The Washington Quarterly, 43:1, 85-99.
Isto significa que tais Forças Armadas serão equiparadas ou superiores às dos EUA, ou de qualquer outra potência que entretanto surja. Neste momento, a menos de trinta anos dessa data, a China está a agir em conformidade, alocando recursos, tecnologia e vontade política.
Em 2021, o governo chinês aumentou em 6,8% as despesas militares que são já, oficialmente, as segundas maiores do mundo.

Todavia, os números deverão ser muitíssimo superiores, dada a prática chinesa de só divulgar as informações que lhe interessam.
Na realidade, está já a confrontar directamente os EUA em alguns itens.
Neste momento o exército chinês é claramente o mais numeroso do mundo, e está a modernizar-se a olhos vistos, tanto em equipamentos, como em doutrinas de emprego.
A marinha é também a maior do mundo, em número de navios, está a modernizar aceleradamente as plataformas com equipamentos e doutrinas, e a dotar-se de mais submarinos, porta-aviões e sistemas de comando, controlo e comunicações.
A Força Aérea, com cerca de 2.500 aeronaves de todos os tipos é a maior da região, e tem vindo a equipar-se com material de elevada qualidade que, em alguns campos, se equipara já ao que de melhor se fabrica nos países ocidentais.
A Força de Mísseis, além dos milhares de vectores convencionais baseados em terra (balísticos e de cruzeiro), está dotada de centenas de ICBM, aptos a lançar cabeças nucleares a distâncias que abrangem todos os continentes.
Em matéria de guerra no espaço, ciberguerra e guerra electrónica e psicológica, os progressos são extraordinários e o alvo principal são exactamente os EUA.
A ideia é, por enquanto, dissuadir, deter ou derrotar intervenções de terceiros durante eventuais operação nas imediações, como, por exemplo a retomada de Taiwan, Mas a projecção de poder para zonas mais longínquas está a ser preparada metodicamente, não só com a construção acelerada de porta-aviões, mas também com instalação de bases de apoio. Uma já existe em Djibouti, e estão a ser consideradas outras em Myanmar, Tailândia, Singapura, Indonésia, Paquistão, Sri Lanka, Emiratos, Quénia, Seychelles, Tanzânia, Angola, Tajiquistão, Cambodja, etc.
Isto além dos portos que a China já adquiriu nos EUA, Europa e África, e dos que nos procura activamente adquirir, como o de Sines.
A China conduz também operações para influenciar decisões de outros países, que sejam favoráveis aos seus objectivos, através de instituições culturais, média, negócios, academia, e politica, nos EUA, países importantes e instituições internacionais, tendo em vista fazer prevalecer a narrativa chinesa e lançar a divisão e a fragmentação nas sociedades potencialmente adversárias.
Paralelamente, continua a roubar e/ou sabotar os esforços de pesquisa cientifica e tecnológica dos países ocidentais, usando de acções legais e ilegais, como investimento estrangeiro, joint-ventures, fusões e aquisições, espionagem.
Em síntese, a China age de forma absolutamente maquiavélica relativamente a tudo, desde o clima ao comércio internacional, assinando acordos que cumpre apenas se, e quando, lhe convém, mas que comprometem os países ocidentais que os assinam, dada a forma como os encaram.
A nível militar, mais do que o hardware, que é, em si, impressionante, importa ressaltar a alteração das doutrinas de emprego e de conceitos operacionais, cujo ênfase está a ser colocado na preparação para operações conjuntas, prontidão e capacidade de projecção de poder.
Claro que há ainda muito para fazer. A China não tem ainda as capacidades militares para se confrontar com os EUA num conflito global. Porém, torna-se evidente que a paulatina modernização das suas forças armadas não se destina apenas a mostrar brilho para inglês ver, ou para uso nos eventuais conflitos locais.
O que se busca é o seu efectivo uso integrado com os objectivos estratégicos chineses que são, também eles, de “classe mundial”. Ou seja, nada menos que uma mudança radical da ordem internacional com a China, num belo dia. a desaguar como a hiperpotência hegemónica.
Independentemente das incertezas do futuro, o facto é que a China tem uma visão estratégica, um objectivo, um plano, capacidades e vontade politica que concorrem para um desfecho que, a ser concretizado, fará deste país a hiperpotência mundial, com tudo o que isso significa para o resto do mundo.
A China é um exército disciplinado, que usa todos os aspectos do poder, tendo em vista a clara missão delineada pelo imperador do momento, o Senhor Xi Jinping.
Com as velhas máximas de Sun Tzu e um discurso delicodoce, vai enleando o resto do mundo, particularmente o Ocidente, numa teia de dependências. O Ocidente descobre-se já hoje perigosamente dependente da China para a obtenção de inúmeras matérias-primas, como as terras raras, e produtos industriais diversos, em todos as sectores da actividade) e opções tais, que, quando chegar a hora do falcão, só poderá respirar com a autorização do Imperador.
José do Carmo
* O autor usa a ortografia anterior.