A boa censura

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Há pouco mais de dois anos, uma apresentação interna da Google (The Good Censor) transpirou para o conhecimento público e, basicamente, afirmava a ideia de que a liberdade de expressão, um conceito fundamental nas democracias liberais, já não era aceitável na internet e se tinha transformado numa arma política, económica e social

Embora negando o evidente e comprovado enviesamento político e ideológico, a razão implícita na apresentação, o elefante na sala, digamos assim, eram os sucessos eleitorais de Trump, nos EUA e do Partido “Alternativa para a Alemanha”, nas terras teutónicas.

Segundo os autores do documento, alguns usuários das redes sociais, “comportavam-se mal” e davam oportunidade a maus políticos de expandirem a sua influência, dando voz a racismos, misogenias e outras ideias erradas.

Paradoxalmente notavam o crescimento do “discurso do ódio” e de seguida referiam com aprovação a jornalista Sarah Jeong, do NYT, bastamente conhecida pelo seu discurso de ódio contra homens brancos, no Twitter (por exemplo, “Oh man, it’s kind of sick how much joy I get out of being cruel to old white men.”).

E isto enquanto a própria Google era processada por James Damore, um seu ex-engenheiro, por discriminação contra homens brancos.

O documento de 85 páginas advogava também a necessidade de censurar certos tipos de discurso em resposta a desenvolvimentos políticos ligados à ascensão eleitoral de ideias opostas à ortodoxia definida pela hegemonia cultural paulatinamente imposta pela esquerda.

Segundo o documento, face a estes eventos desagradáveis, a liberdade de expressão era uma utopia e a Google, Facebook, YouTube, Twitter, etc., tinham de escolher entre a liberdade de expressão e a segurança e civilidade, ou seja, basicamente entre os fundamentos da democracia e as justificações das ditaduras.

Em tempos, Erdogan, o moderno sultão otomano, disse que a democracia é como um autocarro: uma vez chegado ao destino, há que sair!

As plataformas tecnológicas agem agora como Erdogan.

Alcançado o poder supremo pelo controle das redes construídas sobre a liberdade de expressão, quando confrontadas com resultados política e ideologicamente desagradáveis para os seus proprietários, imitam o sultão e saem do autocarro.

Doravante, as plataformas serão não uma ferramenta para a livre expressão de ideias, mas sim para as ideias “certas”, o “bempensar” de que falava Orwell em 1984.

Obviamente, o “certo” e “errado”, “mal” e “bem”, “verdade” e “mentira”, são definidos e certificados pelos novos notários da “verdade” e da moralidade definida pela ortodoxia dominante.

Deixam pois de ser plataformas neutras, para se assumirem como vetores da luta política e ideológica.

O facto já se tinha notado em 2016 quando a Google suprimiu, nas buscas, as sugestões automáticas de completamento negativas, associadas à candidata Hillary Clinton.

As recomendações de “The Good Censor” estão agora aí a todo o vapor na conduta das Big Tech que incorporam abertamente algoritmos de censura e editores humanos, portadores de fulminantes lápis azuis.

O YouTube, por exemplo, promove certas “fontes de autoridade”, nomeadamente media “liberais” ( “esquerda”, no sentido americano do termo), sobrepondo-as à opinião do cidadão comum, dando substância ao slogan de “Animal Farm”, de que também aqui todos os animais são iguais, mas há uns mais iguais que outros.

Mas o fenómeno não é apenas americano.

Há algumas semanas, as duas candidatas de esquerda às eleições presidenciais portuguesas, exigiram a ilegalização de um partido legal, pelo facto de não estarem de acordo com o seu discurso.

Há alguns meses, o governo português manifestou a intenção de “monitorizar” o “discurso de ódio” nas redes e nos meios de comunicação.

No passado dia 9 de fevereiro, no jornal digital Global Times, reconhecido como a voz em inglês do Partido Comunista da China, o jornalista Hu Xijin escrevia que naturalmente a liberdade de expressão não podia colocar em causa a “boa governação” e dizia que era assim em todo o lado, como ficava demonstrado pelo facto de Trump ter sido banido das plataformas eletrónicas americanas.

Não é de espantar que o PCC, estes políticos e as plataformas eletrónicas pensem praticamente da mesma maneira.

A pulsão virtuosa é exatamente a mesma, é intemporal, só tendo sido domesticada, com grande esforço, pelo advento da democracia liberal.

Quem tem o poder e se considera iluminado, acha sempre que o está a exercer do alto de uma superior moralidade, de uma plataforma de superior iluminação, para o bem das pessoas, e que estas têm de aceitar, se possível a bem, se necessário a mal, as imposições virtuosas da elite esclarecida.

Não se trata de cinismo, mas sim de uma formidável convicção de que se está do lado certo e que não há outra forma correcta de ver o mundo, pelo que quem discorda, só pode ser gente ignorante, ou perturbada, ou mal-intencionada, portadora de resmas de desagradáveis e perigosos “ismos”.

Há sempre um Robespierre a ronronar, baixinho, no peito dos messias da utopia e do “bem”, e a História demonstra que pode começar de forma fabiana, mas acaba sempre na repressão, à medida que se vai perdendo a paciência com aqueles que se mostram incapazes de encarrilar e perceber que devem agir como boas obreiras da colmeia, sob a esclarecida batuta dos guardiões da virtude e da verdade.

O recalcitrante que pensa de maneira diferente, não tem pois o direito de expressar as suas ideias incorretas, e na verdade nem sequer lhe pode ser permitido viver de acordo com as suas próprias crenças morais, obviamente erradas.

À censura segue-se o cancelamento que numa ditadura pode ser mortal, e nas nossas sociedades vai do mero assédio e insulto, ao despedimento, passando pelo ostracismo, cancelamento de contratos, etc.

Neste tempo em que vivemos, verifica-se na literatura, nos filmes, nos meios de comunicação, na arte, etc., o inacreditável declínio da liberdade de expressão, passada para segundo plano, face a uma hegemonia cultural intolerante, nascida nos esconsos esquerdistas da Teoria Crítica e disseminada de forma gramsciana, em todo o processo de educação e aculturação das nossas sociedades.

Os proprietários e colaboradores das Big Tech e dos media dominantes são já frutos desta longa marcha gramsciana através das instituições e as novas gerações tenderão, cada vez mais, a incorporar na sua cosmovisão, os cânones morais da nova hegemonia cultural.

Doravante, um autor que diga, ou escreva algo fora destes cânones moralistas, tem logo uma matilha atrás, ululante, a pedir o seu linchamento por via do ostracismo social e profissional. É cancelado, afastado, despedido, insultado e punido, com a reputação e a vida seriamente deterioradas. Os amigos mudam de passeio e fazem de conta que nem o conhecem. Acaba de acontecer com a actriz Gina Carano, despedida de “The Mandalorian”.

Recentemente, aconteceu a J. K. Rowling, Jeanine Cummins e muitos outros, acusados dos crimes de insensibilidade, apropriação cultural, misoginia, racismo ou transfobia, com penas que chegaram à revogação dos contratos.

Nada nem ninguém está livre da tirania censória da nova ortodoxia, nem mesmo obras clássicas e figuras históricas.

Universidades retiram a Odisseia do currículo, filmes como “Dumbo” e “Tudo o Vento Levou” são marcadas como racistas, a própria História é reescrita e os seus protagonistas são julgados, realçados, ou cancelados em função da percebida adesão aos cânones da nova moral ideológica.

Facebook, YouTube, Google, Apple, Amazon, etc, são agora, por autonomeação, os árbitros da verdade e da liberdade de expressão. Todas permitem, por exemplo o mais extremado discurso de ódio de BLM, Antifas, aiatolas, China, e numerosos grupos radicais de esquerda, mas basta dizer, pensar ou sugerir algo “errado” e é-se banido.

Só perante a autocrítica pública (uma prática dos regimes comunistas) e a aceitação do credo dominante, poderá haver reabilitação.

Em novembro de 2020, por exemplo, o Twitter recusou remover um tweet de um governante chinês que mostrava um soldado australiano com uma faca no pescoço de uma criança.

Tal tweet seria motivo para censura imediata se o autor fosse o Trump, ou alguém da sua administração; mas perante o protesto das autoridades australianas, a companhia disse que o tweet se inscrevia numa aceitável troca de opiniões encaloradas, típicas da política internacional.

Todavia, há bem pouco tempo, o mesmo Twitter e as outras plataformas não hesitaram em unir esforços para eliminarem do mercado a app Parler, por esta se recusar a aderir às suas regras censórias.

Em suma, as mais poderosas companhias do mundo decidiram que a liberdade de expressão é uma coisa secundária, tem geometria variável, e só é boa se as pessoas expressarem as coisas certas.

Todavia, é porque pode ser desagradável, que existem leis para proteger a liberdade de expressão. Para alguém escrever que o sol nasce e as andorinhas fazem os ninhos, não são necessárias leis protetoras. Se a liberdade de expressão for abalroada por poder ser ofensiva ou desagradável, ou “errada”, então não haverá sequer qualquer discussão política, ideológica, etc.

Tudo aquilo que Orwell profetizou em “1984”, está a acontecer a uma espantosa velocidade, não apenas pela mão de governos totalitários, como acontece na China, mas pelo controlo das Big Tech, ideologicamente motivadas.

Nós, portugueses, devíamos perceber o que está em causa.

Antes do 25 de Abril, a ditadura mantinha suspensos sobre os portugueses os famosos lápis azuis, brandidos pelos não menos famosos coronéis, cujo rabisco calava e truncava ideias e opiniões.

Hoje ei-la aí outra vez, umas vezes subreptícia e fabiana, outras vezes descarada e prepotente, para tentar vergar-nos à canga.

Cheia de certezas e verdades, chega-nos pela linguagem, pelos media, pela escola, pelas redes sociais, pelas Big Tech, mas empunhando na mesma as tesouras do ofício, chamando a si a nobre missão de nos proteger de nós próprios, em nome de verdades que ela mesma inventa, institui, interpreta e executa.

A democracia corre perigo de morte. Os novos censores, as patrulhas da linguagem, andam aí, para garantir que as pessoas não leem o que não devem ler, não pensam o que não devem pensar e sobretudo não dizem o que não devem dizer.

É visível a firme intenção de, a bem ou a mal, guiar o nosso espírito imprecatado, de nos ensinar a distinguir entre o bem e o mal, de nos precaver contra opiniões erradas

Há novos coronéis do pensamento e da linguagem que fulminam os outros com o porrete da sua alta sabedoria e instrução e nos impõem a ditadura das suas sensibilidades e conceitos ideológicos.

Não estamos no bom caminho.

Sem liberdade de expressão não há ideias novas, a criatividade fenece, a democracia morre e as trevas esperam-nos já ao virar da esquina.


José do Carmo

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Latest comments

  • Caro cronista,

    Entendo toda a precupação que vai pelo mundo motivada pela actuação de um grupo de fedelhos que ascenderam a um elevado estrelato empresarial e se auto promoverao a ‘rulers’ do mundo.

    Não entendo também a inacção dos estados/governos face ao fenómeno ‘redes sociais’ e correlativos. Como por exemplo, a equipe de Trump que nunca se preocupou em enquadrar normativamente a actividade dessas entidades, como está tentar fazer, agora(!), a Austrália. Todos os governos ocidentais estão a assobiar para o lado, permitindo a actuação, legítima ou não, dessas entidades com toda a impunidade até mais um problema idêntico voltar a acontecer.

    Na substância da coisa, entendo mal também, como é que governos/chefes de estado utilizem meios cuja regulação, pelos vistos, é mais do que insuficiente, para darem conhecimento aos cidadãos das posições respectivas.
    O exemplo mais candente é de novo D. Trump que utilizava um desses meios, onde qualquer ignorante ‘postava’ um qualquer dislate, para fazer saber ao mundo qualquer posição do presidente dos USA. E continuou quase a mendigar espaço ‘naquilo’ depois de o silenciarem … até ao cancelamento definitivo.
    E isso continua a acontecer com várias entidades que deveriam ter pensado bem naquela forma comunicação antes de se entregarem ‘àquilo’. Hoje estão nas mão daqueles fedelhos.

    Pessoalmente, acho isso um verdadeiro disparate.
    Trabalhei quase vinte anos em informática e nunca senti necessidade de utilizar as tais so called redes.
    Se ‘aquilo’ está acessível a todos os disparates e inanidades possíveis, então não é coisa para eu utilizar, seguramente.

    Deveria ser assim que os responsáveis políticos, e não só, deveriam pensar também e então outras coisas teriam aparecido certamente.
    Esta boa censura, como lhe chama, vai continuar até aparecerem outros meios menos sujeitos humores de fedelhos deslumbrados.

    Por isso, não atribuo ao fenómeno grande importância ou gravidade, apenas o reflexo do baixo nível de dirigentes políticos e empresariais que se desenvolveram nesta época.
    Penso ainda que estas situações estúpidas irão ser atenuadas ou desaparecerão dentro de algum tempo e os tais fedelhos desaparecerão também tal como apareceram.

    Os meus cumprimentos.

  • Está na altura de reler Eric Arthur Blair [George Orwell]. E de sentir como tão bem conhecia a espécie:

    Every generation imagines itself to be more intelligent than the one that went before it, and wiser than the one that comes after it.
    War is peace. Freedom is slavery. Ignorance is strength.
    The further a society drifts from the truth, the more it will hate those that speak it.

    Lutemos.

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